terça-feira, 17 de setembro de 2013

Poetry / Poesia - Marianne Moore



MARIANNE MOORE


Poetry

Poesia

Eu, também, detesto isso: existem coisas importantes além
destas ninharias.
Lendo isto, no entanto, com total desprezo, se
descobre nisto
afinal, um lugar para ser genuíno.
Mãos que podem segurar, olhos
que podem dilatar, cabelos que se arrepiam
se precisam, tais coisas são importantes não porque uma

altissonante interpretação pode ser colocada porém
porque elas são
úteis. Quando elas chegam tão derivadas quanto
inteligíveis,
a mesma coisa deve ser dita para nós todos, que não
nos admiramos que
não podemos entender: um morcego
suspenso de cabeça-pra-baixo ou em busca de algo

para comer, elefantes se empurrando, um corcel a galope,
um incansável lobo sob
uma árvore, imóvel enquanto sua pele estremece tal
um cavalo a perceber uma mosca,
o fã de baseball, o estatístico --
nem sequer é válido
erguer protesto contra “negócios burocracias e

livros didáticos”; são todos fenômenos importantes.
Deve-se fazer uma distinção, entretanto:
quando dragada na proeminência de meio-poetas, o
resultado não é a poesia,
não até que os poetas entre nós possam ser
literatos da
imaginação” -- acima da
insolência e da trivialidade possam apresentar

para inspeção, “jardins imaginários com sapos de verdade”,
é o que devemos ter. Enquanto isso, se vocês
pedem numa mão,
a matéria-prima da poesia em
toda a sua primitividade, e
na outra mão conserva o
genuíno, realmente estão interessados
em poesia.


Marianne Moore


Trad. livre by Leonardo de Magalhaens





Poetry

  I, too, dislike it: there are things that are important beyond all
this fiddle.
Reading it, however, with a perfect contempt for it, one
discovers in
it after all, a place for the genuine.
Hands that can grasp, eyes
that can dilate, hair that can rise
if it must, these things are important not because a

high-sounding interpretation can be put upon them but because
they are
useful. When they become so derivative as to become
unintelligible,
the same thing may be said for all of us, that we
do not admire what
we cannot understand: the bat
holding on upside down or in quest of something to

eat, elephants pushing, a wild horse taking a roll, a tireless wolf
under
a tree, the immovable critic twitching his skin like a horse that
feels a
flea, the base-
ball fan, the statistician--
nor is it valid
to discriminate against 'business documents and

school-books'; all these phenomena are important. One must
make a distinction
however: when dragged into prominence by half poets, the
result is not poetry,
nor till the poets among us can be
'literalists of
the imagination'--above
insolence and triviality and can present

for inspection, 'imaginary gardens with real toads in them', shall
we have
it. In the meantime, if you demand on the one hand,
the raw material of poetry in
all its rawness and
that which is on the other hand
genuine, you are interested in poetry.


Marianne Moore Poetry






segunda-feira, 16 de setembro de 2013

POEMA SUJO - Ferreira Gullar








FERREIRA GULLAR



Poema Sujo

[trechos]



Mas na cidade havia
muita luz,
        a vida
fazia rodar o século nas nuvens
               sobre nossa varanda
por cima de mim e das galinhas no quintal
               por cima
do depósito onde mofavam
paneiros de farinha
               atrás da quitanda,
                       e era pouco
viver, mesmo
no salão de bilhar, mesmo
no botequim do Castro, na pensão
da Maroca nas noites de sábado, era pouco
banhar-se e descer a pé
para a cidade de tarde
(sob o rumor das árvores)
                 ali
                 no norte do Brasil
                 vestido de brim.


         E por ser pouco
         era muito,
         que pouco muito era o verde
fogo da grama, o musgo do muro, o galo
que vai morrer,
a louça na cristaleira,
o doce na compoteira, a falta
de afeto, a busca
do amor nas coisas.


                 Não nas pessoas:
nas coisas, na muda carne
das coisas, na cona da flor, no oculto
falar das águas sozinhas:
                         que a vida
passava por sobre nós,
                         de avião.


Não tem a mesma velocidade o domingo
         que a sexta-feira com seu azáfama de compras
         fazendo aumentar o tráfego e o consumo
         de caldo de cana gelado,
                                    nem tem
         a mesma velocidade
         a açucena e a maré
com seu exército de borbulhas e ardentes caravelas
         a penetrar soturnamente o rio
         noutra lentidão que a do crepúsculo
         que, no alto,
         com sua grande engrenagem escangalhada
moía a luz.
                  Outra velocidade
tem Bizuza sentada no chão do quarto
         a dobrar os lençóis lavados e passados
         a ferro, arrumando-os na gaveta da cômoda, como
                se a vida fosse eterna.
                        E era
         naquele seu universo de almoços e temperos
         de folhas de louro e de pimenta-do-reino
         mastruz para tosse braba,
                           universo
         de panelas e canseiras entre as paredes da cozinha
         dentro de um surrado vestido de chita,
                                    enfim,
         onde batia o seu pequenino coração.
                    E se não era
         eterna a vida, dentro e fora do armário,
         o certo é que
         tendo cada coisa uma velocidade
                   (a do melado
                    escura, clara
                    a da água
                    a derramar-se)
         cada coisa se afastava
         desigualmente
         de sua possível eternidade.
                  Ou
                  se se quer
                  desigualmente
         a tecia
         na sua própria carne escura ou clara
         num transcorrer mais profundo que o da semana.
                  Por isso não é certo dize
         que é no domingo que melhor se vê
                  a cidade
         - as fachadas de azulejo, a Rua do Sol vazia
         as janelas trançadas no silêncio -
                  quando ela
                  parada
                  parece flutuar.


E que melhor se vê uma cidade
        quando - como Alcântara
        todos os habitantes se foram
e nada resta deles (sequer
        um espelho de aparador num daqueles
aposentos sem teto) - se não
        entre as ruínas
        a persistente certeza de que
        naquele chão
        onde agora crescem carrapichos
        eles efetivamente dançaram
        (e quase se ouvem vozes
        e gargalhadas
                que se acendem e apagam nas dobras da brisa)
                                 Mas


        se é espantoso pensar
        como tanta coisa sumiu, tantos
guarda-roupas e camas e mucamas
        tantas e tantas saias, anáguas,
        sapatos dos mais variados modelos
        arrastados pelo ar junto com as nuvens,
                                 a isso
        responde a manhã
        que
        com suas muitas e azuis velocidades
        segue em frente
                            alegre e sem memória

        É impossível dizer
em quantas velocidades diferentes
        se move uma cidade
                           a cada instante
                           (sem falar nos mortos
                           que voam para trás)
                           ou mesmo uma casa
onde a velocidade da cozinha
não é igual à da sala (aparentemente imóvel
nos seus jarros e bibelôs de porcelana)
         nem à do quintal
         escancarado às ventanias da época


                   e que dizer das ruas
de tráfego intenso e da circulação do dinheiro
e das mercadorias
         desigual segundo o bairro e a classe, e da
         rotação do capital
         mais lenta nos legumes
         mais rápida no setor industrial, e
         da rotação do sono
         sob a pele,
         do sonho
         nos cabelos?


         e as tantas situações da água nas vasilhas
         (pronta a fugir)


                 a rotação
         da mão que busca entre os pentelhos
         o sonho molhado os muitos lábios
         do corpo
         que ao afago se abre em rosa, a mão
         que ali se detém a sujar-se
         de cheiros de mulher,
                  e a rotação
         dos cheiros outros
         que na quinta se fabricam
         junto com a resina das árvores e o canto
         dos passarinhos?
         Que dizer da circulação
         da luz solar
arrastando-se no pó debaixo do guarda-roupa
         entre sapatos?
                 e da circulação
         dos gatos pela casa
         dos pombos pela brisa?
         e cada um desses fatos numa velocidade própria
         sem falar na própria velocidade
         que em cada coisa há
                  como os muitos


         sistemas de açúcar e álcool numa pêra
                  girando
         todos em diferentes ritmos
                           (que quase


         se pode ouvir)
                  e compondo a velocidade geral
         que a pêra é


do mesmo modo que todas essas velocidades mencionadas
          compõem
(nosso rosto refletido na água do tanque)
          o dia
          que passa
          - ou passou -
          na cidade de São Luís.


          E do mesmo modo
que há muitas velocidades num
          só dia
e nesse mesmo dia muitos dias
          assim
não se pode também dizer que o dia
tem um único centro
                                   (feito um caroço
                                    ou um sol)
          porque na verdade um dia
tem inumeráveis centros
          como, por exemplo, o pote de água
          na sala de jantar
          ou na cozinha
          em tomo do qual
desordenadamente giram os membros da família.


          E se nesse caso
é a sede a força de gravitação
          outras funções metabólicas
          outros centros geram
          como a sentina
          a cama
          ou a mesa de jantar
(sob uma luz encardida numa
          porta-e-janela da Rua da Alegria
          na época da guerra)
sem falar nos centros cívicos, nos centros
          espíritas, no Centro Cultural
Gonçalves Dias ou nos mercados de peixe,
          colégios, igrejas e prostíbulos,
          outros tantos centros do sistema
          em que o dia se move
(sempre em velocidades diferentes)
          sem sair do lugar.


          Porque
                   quando todos esses sóis se apagam
                   resta a cidade vazia
(como Alcântara)
no mesmo lugar.


          Porque
          diferentemente do sistema solar
          a esses sistemas
          não os sustém o sol e sim
          os corpos
          que em tomo dele giram:
          não os sustém a mesa
          mas a fome
          não os sustém a cama
          e sim o sono
          não os sustém o banco
          e sim o trabalho não pago


          E essa é a razão por que
          quando as pessoas se vão
                     (como em Alcântara)

apagam-se os sóis (os
          potes, os fogões)
          que delas recebiam o calor


          essa é a razão
          por que em São Luís
donde as pessoas não se foram
          ainda neste momento a cidade se move
          em seus muitos sistemas
          e velocidades
          pois quando um pote se quebra
          outro pote se faz
          outra cama se faz
          outra jarra se faz
          outro homem
          se faz
para que não se extinga
          o fogo
          na cozinha da casa


O que eles falavam na cozinha
          ou no alpendre do sobrado
          (na Rua do Sol)
          saía pelas janelas


          se ouvia nos quartos de baixo
na casa vizinha, nos fundos da Movelaria
          (e vá alguém saber
          quanta coisa se fala numa cidade
          quantas vozes
          resvalam por esse intrincado labirinto
          de paredes e quartos e saguões,
          de banheiros, de pátios, de quintais
                           vozes


          entre muros e plantas,
                           risos,
          que duram um segundo e se apagam)


E são coisas vivas as palavras
          e vibram da alegria dó corpo que as gritou
          têm mesmo o seu perfume, o gosto
          da carne
          que nunca se entrega realmente
          nem na cama
                            senão a si mesma
                            à sua própria vertigem
                            ou assim
falando
ou rindo
                            no ambiente familiar
          enquanto como um rato
          tu podes ouvir e ver
          de teu buraco
          como essas vozes batem nas paredes do pátio vazio
          na armação de ferro onde seca uma parreira
          entre arames
          de tarde
                   numa pequena cidade latino-americana.


          E nelas há
          uma iluminação mortal

                   que é da boca
                   em qualquer tempo

           mas que ali
           na nossa casa
                    entre móveis baratos
                    e nenhuma dignidade especial
           minava a própria existência.


                         Ríamos, é certo,
            em torno da mesa de aniversário coberta de pastilhas
            de hortelã enroladas em papel de seda colorido,
            ríamos, sim,
            mas
            era como se nenhum afeto valesse
            como se não tivesse sentido rir
            numa cidade tão pequena.


                     O homem está na cidade
                     como uma coisa está em outra
                     e a cidade está no homem
                     que está em outra cidade


                     mas variados são os modos
                     como uma coisa
                     está em outra coisa:
                     o homem, por exemplo, não está na cidade
                     como uma árvore está
                     em qualquer outra
                     nem como uma árvore
                     está em qualquer uma de suas folhas
                     (mesmo rolando longe dela)
                     O homem não está na cidade
                     como uma árvore está num livro
                     quando um vento ali a folheia


            a cidade está no homem
            mas não da mesma maneira
            que um pássaro está numa árvore
            não da mesma maneira que um pássaro
            (a imagem dele)
            está/va na água
                     e nem da mesma maneira
            que o susto do pássaro
            está no pássaro que eu escrevo


            a cidade está no homem
            quase como a árvore voa
            no pássaro que a deixa


            cada coisa está em outra
            de sua própria maneira
            e de maneira distinta
            de como está em si mesma


            a cidade não está no homem
            do mesmo modo que em sua
            quitandas praças e ruas



na íntegra em


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...

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Morte e Vida Severina - João Cabral de Melo Neto





JOÃO CABRAL DE MELO NETO


Morte e Vida Severina

O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI

— O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.

Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.

Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.  

[…]


ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO CEMITÉRIO

—  Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
— É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
— Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
— É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
— É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
— É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.

— Viverás, e para sempre,
na terra que aqui aforas:
e terás enfim tua roça.
— Aí ficarás para sempre,
livre do sol e da chuva,
criando tuas saúvas.
— Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.
— Trabalharás uma terra
da qual, além de senhor,
serás homem de eito e trator.
— Trabalhando nessa terra,
tu sozinho tudo empreitas:
serás semente, adubo, colheita.
— Trabalharás numa terra
que também te abriga e te veste:
embora com o brim do Nordeste.
— Será de terra tua derradeira camisa:
te veste, como nunca em vida.
— Será de terra e tua melhor camisa:
te veste e ninguém cobiça.
— Terás de terra
completo agora o teu fato:
e pela primeira vez, sapato.
— Como és homem,
a terra te dará chapéu:
fosses mulher, xale ou véu.
— Tua roupa melhor
será de terra e não de fazenda:
não se rasga nem se remenda.
— Tua roupa melhor
e te ficará bem cingida:
como roupa feita à medida.

— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu teu suor vendido).
— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu o moço antigo).
— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu tua força de marido).
— Desse chão és bem conhecido
(através de parentes e amigos).
— Desse chão és bem conhecido
(vive com tua mulher, teus filhos).
— Desse chão és bem conhecido
(te espera de recém-nascido).

— Não tens mais força contigo:
deixa-te semear ao comprido.
— Já não levas semente viva:
teu corpo é a própria maniva.
— Não levas rebolo de cana:
és o rebolo, e não de caiana.
— Não levas semente na mão:
és agora o próprio grão.
— Já não tens força na perna:
deixa-te semear na coveta.
— Já não tens força na mão:
deixa-te semear no leirão.

— Dentro da rede não vinha nada,
só tua espiga debulhada.
— Dentro da rede vinha tudo,
só tua espiga no sabugo.
— Dentro da rede coisa vasqueira,
só a maçaroca banguela.
— Dentro da rede coisa pouca,
tua vida que deu sem soca.

— Na mão direita um rosário,
milho negro e ressecado.
— Na mão direita somente
o rosário, seca semente.
— Na mão direita, de cinza,
o rosário, semente maninha.
— Na mão direita o rosário,
semente inerte e sem salto.

— Despido vieste no caixão,
despido também se enterra o grão.
— De tanto te despiu a privação
que escapou de teu peito a viração.
— Tanta coisa despiste em vida
que fugiu de teu peito a brisa.
— E agora, se abre o chão e te abriga,
lençol que não tiveste em vida.
— Se abre o chão e te fecha,
dando-te agora cama e coberta.
— Se abre o chão e te envolve,
como mulher com quem se dorme.

[…]



para ouvir





quarta-feira, 11 de setembro de 2013

A Máquina do Mundo - Carlos Drummond de Andrade









CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


A Máquina do Mundo


E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

[...]





in Claro Enigma / 1951


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terça-feira, 10 de setembro de 2013

ODE TRIUNFAL - Fernando Pessoa [ Álvaro de Campos ]





Fonte da imagem : http://www.fpessoa.com.ar/




FERNANDO PESSOA

{ Álvaro de Campos }


Ode Triunfal

.
À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

 
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

 
Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical —
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força —
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro.
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgíllo dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

 
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrênuos.
Da faina transportadora-de-cargas dos navios.
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!
Horas europeias, produtoras, entaladas
Entre maquinismos e afazeres úteis!
Grandes cidades paradas nos cafés,
Nos cafés — oásis de inutilidades ruidosas
Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do Útil
E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!
Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!
Novos entusiasmos de estatura do Momento!
Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostados às docas,
Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!
Atividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific!
Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,
Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,
E Piccadillies e Avenues de l'Opéra que entram
Pela minh'alma dentro!

 
Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule!
Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!
Comerciantes; vários; escrocs exageradamente bem-vestidos;
Membros evidentes de clubes aristocráticos;
Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes
E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete
De algibeira a algibeira!
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
Presença demasiadamente acentuada das cocotes
Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)
Das burguesinhas, mãe e filha geralmente
Que andam na rua com um fim qualquer;
A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;
E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra
E afinal tem alma lá dentro!

(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)

A maravilhosa beleza das corrupções políticas,
Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
Agressões políticas nas ruas,
E de vez em quando o cometa dum regicídio
Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!


Notícias desmentidas dos jornais,
Artigos políticos insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes —
Duas colunas deles passando para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de tipografia!
Os cartazes postos há pouco, molhados!
Vients-de-paraître amarelos como uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfato
E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!

[…]





Londres, 1914 - Junho.


...

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segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Romanceiro da Inconfidência - Cecília Meireles





CECÍLIA MEIRELES


ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA

[3 poemas]


FALA AOS PUSILÂNIMES

Se vós não fôsseis os pusilânimes,
recordaríeis os grandes sonhos
que fizestes por esses campos,
longos e claros como reinos;
contaríeis vossas conversas
nos lentos caminhos floreados,
por onde os cavalos, felizes
com o ar límpido e a lúcida água,
sacudiam as crinas livres
e dilatavam a narina,
sorvendo a úmida madrugada!


Se vós não fôsseis os pusilânimes,
revelaríeis a ânsia acordada
à vista dos córregos de ouro,
entre furnas e galerias,
sob o grito de aves esplêndidas,
com a terra palpitante de índios,
e a vasta algazarra dos negros
a chilrear entre o sol e as pedras,
na fina aresta do cascalho.
Também pela vossa narina
houve alento de liberdade!


Se vós não fôsseis os pusilânimes,
confessaríeis essas palavras
murmuradas pelas varandas,
quando a bruma embaciava os montes
e o gado, de bruços, fitava
a tarde envolta em surdos ecos.
Essas palavras de esperança
que a mesa e as cadeiras ouviram,
repetidas na ceia rústica,
misturadas à móvel chama
das candeias que suspendíeis,
desejando uma luz mais vasta.


Se vós não fôsseis os pusilânimes,
hoje em voz alta repetiríeis
rezas que fizestes de joelhos,
- súplicas diante de oratórios,
e promessas diante de altares,
suspiros com asas de incenso
que subiam por entre os anjos
entrelaçados nas colunas.
Aos olhos dos santos pasmados,
para sempre jazem abertos
vossos corações, - negros livros.


Mas ai! fechastes vossas janelas,
e os escaninhos de móveis e almas...


Escrevestes cartas anônimas,
apontastes vossos amigos,
irmãos, compadres, pais e filhos...
Queimastes papéis, enterrastes
o ouro sonegado, fugistes
para longe, com falsos nomes,
e a vossa glória, nesta vida,
foi só morrerdes escondidos,
podres de pavor e remorsos!


Vistes caídos os que matastes,
em vis masmorras, forcas, degredos,
indicados por vosso punho,
por vossa língua peçonhenta,
por vossa letra delatora...
- só por serdes os pusilânimes,
os da pusilânime estirpe,
que atravessa a história do mundo
em todas as datas e raças,
como veia de sangue impuro
queimando as puras primaveras,
enfraquecendo o sonho humano
quando as auroras desabrocham!


Mas homens novos, multiplicados
de hereditárias, mudas revoltas,
bradam a todas as potências
contra os vossos míseros ossos,
para que fiqueis sempre estéreis,
afundados no mar de chumbo
da pavorosa inexistência.
E vós mesmos o quereríeis,
ó inevitáveis criminosos,
para que, odiados os malditos,
pudésseis ter esquecimento...


Chega, porém, do profundo tempo,
uma infinita voz de desgosto,
e com o asco da decadência,
entre o que seríeis e fostes,
murmura imensa: “Os pusilânimes!”
“Os pusilânimes!” repete
o breve passante do mundo,
quando conhece a vossa história!


Em céus eternos palpita o luto
por tudo quanto desperdiçastes...
“Os pusilânimes!” – suspira

Deus. E vós, no fundo da morte,
sabeis que sois – os pusilânimes.
E fogo nenhum vos extingue,
para sempre vos recordardes!

Ó vós, que não sabeis do Inferno,
olhai, vinde vê-lo, o seu nome
é só – PUSILANIMIDADE.





ROMANCE LIII ou DAS PALAVRAS AÉREAS

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!

Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!

Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...

A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...

Detrás de grossas paredes,
de leve, quem vos desfolha?
Pareceis de tênue seda,
sem peso de ação nem de hora...
- e estais no bico das penas,
- e estais na tinta que as molha,
- e estais nas mãos dos juizes,
- e sois o ferro que arrocha,
- e sois barco para o exílio,
- e sois Moçambique e Angola!

Ai, palavras, ai, palavras,
íeis pela estrada afora,
erguendo asas muito incertas,
entre verdade e galhofa,
desejos do tempo inquieto,
promessas que o mundo sopra...

Ai, palavras, ai, palavras,
mirai-vos: que sois, agora?

-Acusações, sentinelas,
bacamarte, algema, escolta;
- o olho ardente da perfídia,
a velar, na noite morta;
- a umidade dos presídios,
- a solidão pavorosa;
- duro ferro de perguntas,
com sangue em cada resposta;
- e a sentença que caminha,
- e a esperança que não volta,
- e o coração que vacila,
- e o castigo que galopa...

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Perdão podíeis ter sido!
-sois madeira que se corta,
sois vinte degraus de escada,
- sois um pedaço de corda...
- sois povo pelas janelas,
cortejo, bandeiras, tropa...

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Éreis um sopro na aragem...
- sois um homem que se enforca.


...


Romance LXXXIV ou Dos Cavalos da Inconfidência

Eles eram muitos cavalos,
ao longo dessas grandes serras,
de crinas abertas ao vento,
a galope entre águas e pedras.
Eles eram muitos cavalos,
donos dos ares e das ervas,
com tranquilos olhos macios,
habituados às densas névoas,
aos verdes, prados ondulosos,
às encostas de árduas arestas;
à cor das auroras nas nuvens,
ao tempo de ipês e quaresmas.

Eles eram muitos cavalos
nas margens desses grandes rios
por onde os escravos cantavam
músicas cheias de suspiros.
Eles eram muitos cavalos
e guardavam no fino ouvido
o som das catas e dos cantos,
a voz de amigos e inimigos;
- calados, ao peso da sela,
picados de insetos e espinhos,
desabafando o seu cansaço
em crepusculares relinchos.

Eles eram muitos cavalos,
- rijos, destemidos, velozes -
entre Mariana e Serro Frio,
Vila Rica e Rio das Mortes.
Eles eram muitos cavalos,
transportando no seu galope
coronéis, magistrados, poetas,
furriéis, alferes, sacerdotes.
E ouviam segredos e intrigas,
e sonetos e liras e odes:
testemunhas sem depoimento,
diante de equívocos enormes.

Eles eram muitos cavalos,
entre Mantiqueira e Ouro Branco
desmanchado o xisto nos cascos,
ao sol e à chuva, pelos campos,
levando esperanças, mensagens,
transmitidas de rancho em rancho.
Eles eram muitos cavalos,
entre sonhos e contrabandos,
alheios às paixões dos donos,
pousando os mesmos olhos mansos
nas grotas, repletas de escravos,
nas igrejas, cheias de santos.

Eles eram muitos cavalos:
e uns viram correntes e algemas,
outros, o sangue sobre a forca,
outros, o crime e as recompensas.
Eles eram muitos cavalos:
e alguns foram postos à venda,
outros ficaram nos seus pastos,
e houve uns que, depois da sentença
levaram o Alferes cortado
em braços, pernas e cabeça.
E partiram com sua carga
na mais dolorosa inocência.

Eles eram muitos cavalos.
E morreram por esses montes,
esses campos, esses abismos,
tendo servido a tantos homens.
Eles eram muitos cavalos,
mas ninguém mais sabe os seus nomes
sua pelagem, sua origem...
E iam tão alto, e iam tão longe!
E por eles se suspirava,
consultando o imenso horizonte!
- Morreram seus flancos robustos,
que pareciam de ouro e bronze.

Eles eram muitos cavalos.
E jazem por aí, caídos,
misturados às bravas serras,
misturados ao quartzo e ao xisto,
à frescura aquosa das lapas,
ao verdor do trevo florido.
E nunca pensaram na morte.
E nunca souberam de exílios.
Eles eram muitos cavalos,
cumprindo seu duro serviço.

A cinza de seus cavaleiros
neles aprendeu tempo e ritmo,
e a subir aos picos do mundo...
e a rolar pelos precipícios...



In: Romanceiro da Inconfidência /.1953



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