Flor,
telefone, moça
Carlos
Drummond de Andrade
Não,
não é conto. Sou apenas um sujeito que escuta algumas vezes, que
outras não escuta, e vai passando. Naquele dia escutei, certamente
porque era a amiga quem falava. É doce ouvir os amigos, ainda quando
não falem, porque amigo tem o dom de se fazer compreender até sem
sinais. Até sem olhos.
Falava-se
de cemitérios? De telefones? Não me lembro. De qualquer modo, a
amiga – bom, agora me recordo que a conversa era sobre flores –
ficou subitamente grave, sua voz murchou um pouquinho.
–Sei
de um caso de flor que é tão triste!
E
sorrindo:
–Mas
você não vai acreditar, juro.
Quem
sabe? Tudo depende da pessoa que conta, como do jeito de contar. Há
dias em que não depende nem disso: estamos possuídos de universal
credulidade. E daí, argumento máximo, a amiga asseverou que a
história era verdadeira.
–Era
uma moça que morava na Rua General Polidoro, começou ela. Perto do
Cemitério São João Batista. Você sabe, quem mora por ali, queira
ou não queira, tem de tomar conhecimento da morte. Toda hora está
passando enterro, e a gente acaba por se interessar. Não é tão
empolgante como navios ou casamentos, ou carruagem de rei, mas sempre
merece ser olhado. A moça, naturalmente, gostava mais de ver passar
enterro do que não ver nada. E se fosse ficar triste diante de tanto
corpo desfilando, havia de estar bem arranjada.
Se
o enterro era mesmo muito importante, desses de bispo ou de general,
a moça costumava ficar no portão do cemitério, para dar uma
espiada. Você já notou como coroa impressiona a gente? Demais. E há
a curiosidade de ler o que está escrito nelas. Morto que dá pena é
aquele que chega desacompanhado de flores – por disposição de
família ou falta de recursos, tanto faz. As coroas não prestigiam
apenas o defunto, mas até o embalam. Às vezes ela chegava a entrar
no cemitério e a acompanhar o préstimo até o lugar do
sepultamento. Deve ter sido assim que adquiriu o costume de passear
lá por dentro. Meu Deus, com tanto lugar pra passear no Rio! E no
caso da moça, quando estivesse mais amolada, bastava tomar um bonde
em direção à praia, descer no Mourisco, debruçar-se na amurada.
Tinha o mar à sua disposição, a cinco minutos de casa. O mar, as
viagens, as ilhas de coral, tudo grátis. Mas por preguiça pela
curiosidade dos enterros, sei lá por quê, deu para andar em São
João Batista, contemplando túmulo. Coitada!
– No
interior isso não é raro…
– Mas
a moça era de Botafogo.
– Ela
trabalhava?
– Em
casa. Não me interrompa. Você não vai me pedir certidão de idade
da moça, nem sua descrição física. Para o caso que estou
contando, isso não interessa. O certo é que de tarde costumava
passear – ou melhor, “deslizar” pelas ruinhas brancas do
cemitério, mergulhada em cisma… Olhava uma inscrição, ou não
olhava, descobria uma figura de anjinho, uma coluna partida, uma
águia, comparava as covas ricas às covas pobres, fazia cálculos de
idade dos defuntos, considerava retratos em medalhões – sim, há
de ser isso que ela fazia por lá, pois que mais poderia fazer?
Talvez mesmo subisse ao morro, onde está a parte nova do cemitério,
e as covas mais modestas. E deve ter sido lá que, uma tarde, ela
apanhou a flor.
–Que
flor?
-Uma
flor qualquer. Margarida, por exemplo. Ou cravo. Para mim foi
margarida, mas é puro palpite, nunca apurei. Apanhou com esse gesto
vago e maquinal que a gente tem diante de um pé de flor. Apanha,
leva ao nariz – não tem cheiro, como inconscientemente já
esperava –, depois amassa a flor, joga para um canto. Não se pensa
mais nisso.
[...]
...
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