Fonte
da imagem: https://prosaempoema.wordpress.com/tag/clarice-lispector/
CLARICE
LISPECTOR
O
Ovo e a Galinha
De
manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo. Olho o ovo com um só
olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver
um ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo e já se torna
ter visto um ovo há três milênios. No próprio instante de se ver
o ovo ele é a lembrança de um ovo. Só vê o ovo quem já o tiver
visto. Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. Ver o
ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. Olhar curto e
indivisível, se é que há pensamento, não há, há o ovo. Olhar é
o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei
com o ovo. O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não
existe.
Ver
o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons
supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só
as máquinas veem o ovo. O guindaste vê o ovo. Quando eu era antiga
um ovo pousou no meu ombro. O amor pelo ovo também não se sente. O
amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo.
Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para
não entornar o silêncio do ovo. Quando morri, tiraram de mim o ovo
com cuidado. Ainda estava vivo. Só quem visse o mundo veria o ovo.
Como o mundo, o ovo é óbvio.
O
ovo não existe mais. Como a luz da estrela já morta, o ovo
propriamente dito não existe mais. Você é perfeito, ovo. Você é
branco. A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez.
Ao
ovo dedico a nação chinesa.
O
ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele
quem pousou. Foi uma coisa que ficou embaixo do ovo. Olho o ovo na
cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior
cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que
se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do
erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. Jamais pensar no ovo é
um modo de tê-lo visto. Será que sei do ovo? É quase certo que
sei. Assim: existo, logo sei. O que eu não sei do ovo é o que
realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente
dito. A Lua é habitada por ovos.
O
ovo é uma exteriorização. Ter uma casca é dar-se. O ovo desnuda
a cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe. Quem se
aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está
querendo outra coisa: está com fome.
O
ovo é a alma da galinha. A galinha desajeitada. O ovo certo. A
galinha assustada. O ovo certo. Como um projétil parado. Pois ovo é
ovo no espaço. Ovo sobre azul. Eu te amo, ovo. Eu te amo como uma
coisa nem sequer sabe que ama outra coisa. Não toco nele. A aura de
meus dedos é que vê o ovo. Não toco nele. Mas dedicar-me à visão
do ovo seria morrer para a vida mundana, e eu preciso da gema e da
clara. O ovo me vê. O ovo me idealiza? O ovo me medita? Não, o ovo
apenas me vê. É isento da compreensão que fere. O ovo nunca
lutou. Ele é um dom. O ovo é invisível a olho nu. De ovo a ovo
chega-se a Deus, que é invisível a olho nu. O ovo terá sido
talvez um triângulo que tanto rolou no espaço que foi se ovalando.
O ovo é basicamente um jarro? Terá sido o primeiro jarro moldado
pelos etruscos? Não. O ovo é originário da Macedônia. Lá foi
calculado, fruto da mais penosa espontaneidade. Nas areias da
Macedônia um homem com uma vara na mão desenhou-o. E depois
apagou-o com o pé nu.
Ovo
é coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce
do ovo. Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe. Mãe é
para isso. O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais
para a sua época. Ovo por enquanto será sempre revolucionário.
Ele vive dentro da galinha para que não o chamem de branco. O ovo é
branco mesmo. Mas não pode ser chamado de branco. Não porque isso
faça mal a ele, mas as pessoas que chamam o ovo de branco, essas
pessoas morrem para a vida. Chamar de branco aquilo que é branco
pode destruir a humanidade. Uma vez um homem foi acusado de ser o que
ele era, e foi chamado de Aquele Homem. Não tinham mentido: Ele era.
Mas até hoje ainda não nos recuperamos, uns após outros. A lei
geral para continuarmos vivos: pode-se dizer 'um rosto bonito', mas
quem disser 'o rosto', morre, por ter esgotado o assunto.
Com
o tempo, o ovo se tornou um ovo de galinha. Não o é. Mas, adotado,
usa-lhe o sobrenome. Deve-se dizer 'o ovo da galinha'. Se se disser
apenas 'o ovo', esgota-se o assunto, e o mundo fica nu. Em relação
ao ovo, o perigo é que se descubra o que se poderia chamar de
beleza, isto é, sua veracidade. A veracidade do ovo não é
verossímil. Se descobrirem, podem querer obrigá-lo a se tornar
retangular. O perigo não é para o ovo, ele não se tornaria
retangular. Mas quem lutasse por torná-lo retangular estaria
perdendo a própria vida. O ovo nos põe, portanto, em perigo. Nossa
vantagem é que o ovo é invisível. E quanto aos iniciados, os
iniciados disfarçam o ovo.
Quanto
ao corpo da galinha, o corpo da galinha é a maior prova de que o ovo
não existe. Basta olhar para a galinha para se tornar óbvio que o
ovo é impossível de existir.
[...]
Mas
e o ovo? Este é um dos subterfúgios deles: enquanto eu falava sobre
o ovo, eu tinha esquecido do ovo. 'Falai, falai', instruíram-me
eles. E o ovo fica inteiramente protegido por tantas palavras. Falai
muito, é uma das instruções, estou tão cansada.
Por
devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu necessário esquecimento. Meu
interesseiro esquecimento. Pois o ovo é um esquivo. Diante de minha
adoração possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar. Mas
se ele for esquecido. Se eu fizer o sacrifício de viver apenas a
minha vida e de esquecê-lo. Se o ovo for impossível. Então livre,
delicado, sem mensagem alguma para mim - talvez uma vez ainda ele se
locomova do espaço até esta janela que desde sempre deixei aberta.
E de madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até a cozinha.
Iluminando-a de minha palidez.
texto
na íntegra em
para
ouvir & ver
mais
sobre obra & autora
Nenhum comentário:
Postar um comentário