quarta-feira, 9 de outubro de 2013

O Ovo e a Galinha - Clarice Lispector


 





CLARICE LISPECTOR


O Ovo e a Galinha


De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo. Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver um ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo há três milênios. No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. Só vê o ovo quem já o tiver visto. Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. Olhar curto e indivisível, se é que há pensamento, não há, há o ovo. Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe.

Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas veem o ovo. O guindaste vê o ovo. Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo. Quando morri, tiraram de mim o ovo com cuidado. Ainda estava vivo. Só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo, o ovo é óbvio.

O ovo não existe mais. Como a luz da estrela já morta, o ovo propriamente dito não existe mais. Você é perfeito, ovo. Você é branco. A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez.

Ao ovo dedico a nação chinesa.

O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem pousou. Foi uma coisa que ficou embaixo do ovo. Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito. A Lua é habitada por ovos.

O ovo é uma exteriorização. Ter uma casca é dar-se. O ovo desnuda a cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe. Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome.

O ovo é a alma da galinha. A galinha desajeitada. O ovo certo. A galinha assustada. O ovo certo. Como um projétil parado. Pois ovo é ovo no espaço. Ovo sobre azul. Eu te amo, ovo. Eu te amo como uma coisa nem sequer sabe que ama outra coisa. Não toco nele. A aura de meus dedos é que vê o ovo. Não toco nele. Mas dedicar-me à visão do ovo seria morrer para a vida mundana, e eu preciso da gema e da clara. O ovo me vê. O ovo me idealiza? O ovo me medita? Não, o ovo apenas me vê. É isento da compreensão que fere. O ovo nunca lutou. Ele é um dom. O ovo é invisível a olho nu. De ovo a ovo chega-se a Deus, que é invisível a olho nu. O ovo terá sido talvez um triângulo que tanto rolou no espaço que foi se ovalando. O ovo é basicamente um jarro? Terá sido o primeiro jarro moldado pelos etruscos? Não. O ovo é originário da Macedônia. Lá foi calculado, fruto da mais penosa espontaneidade. Nas areias da Macedônia um homem com uma vara na mão desenhou-o. E depois apagou-o com o pé nu.

Ovo é coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce do ovo. Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe. Mãe é para isso. O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. Ovo por enquanto será sempre revolucionário. Ele vive dentro da galinha para que não o chamem de branco. O ovo é branco mesmo. Mas não pode ser chamado de branco. Não porque isso faça mal a ele, mas as pessoas que chamam o ovo de branco, essas pessoas morrem para a vida. Chamar de branco aquilo que é branco pode destruir a humanidade. Uma vez um homem foi acusado de ser o que ele era, e foi chamado de Aquele Homem. Não tinham mentido: Ele era. Mas até hoje ainda não nos recuperamos, uns após outros. A lei geral para continuarmos vivos: pode-se dizer 'um rosto bonito', mas quem disser 'o rosto', morre, por ter esgotado o assunto.

Com o tempo, o ovo se tornou um ovo de galinha. Não o é. Mas, adotado, usa-lhe o sobrenome. Deve-se dizer 'o ovo da galinha'. Se se disser apenas 'o ovo', esgota-se o assunto, e o mundo fica nu. Em relação ao ovo, o perigo é que se descubra o que se poderia chamar de beleza, isto é, sua veracidade. A veracidade do ovo não é verossímil. Se descobrirem, podem querer obrigá-lo a se tornar retangular. O perigo não é para o ovo, ele não se tornaria retangular. Mas quem lutasse por torná-lo retangular estaria perdendo a própria vida. O ovo nos põe, portanto, em perigo. Nossa vantagem é que o ovo é invisível. E quanto aos iniciados, os iniciados disfarçam o ovo.

Quanto ao corpo da galinha, o corpo da galinha é a maior prova de que o ovo não existe. Basta olhar para a galinha para se tornar óbvio que o ovo é impossível de existir.

[...]

Mas e o ovo? Este é um dos subterfúgios deles: enquanto eu falava sobre o ovo, eu tinha esquecido do ovo. 'Falai, falai', instruíram-me eles. E o ovo fica inteiramente protegido por tantas palavras. Falai muito, é uma das instruções, estou tão cansada.

Por devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu necessário esquecimento. Meu interesseiro esquecimento. Pois o ovo é um esquivo. Diante de minha adoração possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar. Mas se ele for esquecido. Se eu fizer o sacrifício de viver apenas a minha vida e de esquecê-lo. Se o ovo for impossível. Então livre, delicado, sem mensagem alguma para mim - talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até esta janela que desde sempre deixei aberta. E de madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminando-a de minha palidez.



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