quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Toda a América - Ronald de Carvalho





RONALD DE CARVALHO

[RJ, 1893 – 1935]


Toda a América

Entre Buenos Aires e Mendonza

3

Onde estão os teus poetas, América?
Onde estão eles que não compreendem
os teus meios-dias voluptuosos,
as tuas redes pesadas de corpos eurítmicos,
que se balançam nas sombras úmidas,
as tuas casas de adobe que dormem
debaixo dos cardos,
os teus canaviais que estalam e se
derretem em pingos de mel,
as tuas solidões, por onde o índio passa,
coberto de couro, entre rebanhos de cabras,
as tuas matas que chiam, que trilham,
que assobiam e fervem,
os teus fios telegráficos que enervam a
atmosfera de humores humanos,
os martelos dos teus estaleiros,
os silvos das tuas turbinas,
as torres dos teus altos fornos,
o fumo de toas as tuas chaminés,
e os teus silêncios silvestres que absorvem
e espaço e o tempo?

Onde estão os teus poetas, América?

Onde estão eles que não se debruçam
sobre os trágicos suores das tuas sestas bárbaras?
No teu sangue mestiço crepitam fogos de queimadas,
juízes, tribunais, leis, bolsas, congressos,
escolas, bibliotecas, tudo se estilhaça
em clarões, de repente, nos teus pesadelos irremediáveis.
Ah! Como sabes queimas todos esses
troncos da floresta humana,
e refazer, como a Natureza, a tua ordem pela destruição!

Onde estão os teus poetas, América?

Onde estão eles que não veem o alarido
construtor dos teus portos,
onde estão eles que não veem essas bocas
marítimas que te alimentam de homens,
que atulham de combustível as fornalhas
dos teus caldeamentos,
onde estão eles que não veem todas essas
proas entusiasmadas,
e esses guindastes e essas gruas que se cruzam,
e essas bandeiras que trazem a maresia
dos fiordes e dos golfos,
e essas quilhas e esses cascos veteranos
que romperam ciclones e pampeiros,
e esses mastros que se desarticulam,
e essas cabeças nórdicas e mediterrâneas,
que os teus mormaços vão fundir em bronze,
e esses olhos boreais encharcados de luz
e de verdura,
e esses cabelos muitos finos que procriarão
cabelos muito crespos,
e todos esses pés que fecundarão os teus
desertos!

Teus poetas não são dessa raça de servos
que dançam no compasso de gregos e latinos,
teus poetas devem ter as mãos sujas de
terra , de seiva e limo,
as mãos da criação!
E inocência para adivinhar os teus prodígios,
e agilidade para correr por todo o teu
corpo de ferro, de carvão, de cobre, de
ouro, de trigais, milharais e cafezais!

Teu poeta será ágil e inocente, América!
A alegria será a sua sabedoria,
a liberdade será a sua sabedoria,
e sua poesia será o vagido da tua própria
substância, América, da tua própria
substância lírica e numerosa.

Do teu tumulto ele arrancará uma energia submissa,
e no seu molde múltiplo todas as formas caberão,
e tudo será poesia na força de sua inocência.

América, teus poetas não são dessa raça
de servos que dançam no compasso de
gregos e latinos!



[...]



in: Toda a América [1926]



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