sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Flor, telefone, moça - Carlos Drummond de Andrade





Flor, telefone, moça


Carlos Drummond de Andrade


Não, não é conto. Sou apenas um sujeito que escuta algumas vezes, que outras não escuta, e vai passando. Naquele dia escutei, certamente porque era a amiga quem falava. É doce ouvir os amigos, ainda quando não falem, porque amigo tem o dom de se fazer compreender até sem sinais. Até sem olhos.

Falava-se de cemitérios? De telefones? Não me lembro. De qualquer modo, a amiga – bom, agora me recordo que a conversa era sobre flores – ficou subitamente grave, sua voz murchou um pouquinho.

Sei de um caso de flor que é tão triste!

E sorrindo:
Mas você não vai acreditar, juro.

Quem sabe? Tudo depende da pessoa que conta, como do jeito de contar. Há dias em que não depende nem disso: estamos possuídos de universal credulidade. E daí, argumento máximo, a amiga asseverou que a história era verdadeira.

Era uma moça que morava na Rua General Polidoro, começou ela. Perto do Cemitério São João Batista. Você sabe, quem mora por ali, queira ou não queira, tem de tomar conhecimento da morte. Toda hora está passando enterro, e a gente acaba por se interessar. Não é tão empolgante como navios ou casamentos, ou carruagem de rei, mas sempre merece ser olhado. A moça, naturalmente, gostava mais de ver passar enterro do que não ver nada. E se fosse ficar triste diante de tanto corpo desfilando, havia de estar bem arranjada.

Se o enterro era mesmo muito importante, desses de bispo ou de general, a moça costumava ficar no portão do cemitério, para dar uma espiada. Você já notou como coroa impressiona a gente? Demais. E há a curiosidade de ler o que está escrito nelas. Morto que dá pena é aquele que chega desacompanhado de flores – por disposição de família ou falta de recursos, tanto faz. As coroas não prestigiam apenas o defunto, mas até o embalam. Às vezes ela chegava a entrar no cemitério e a acompanhar o préstimo até o lugar do sepultamento. Deve ter sido assim que adquiriu o costume de passear lá por dentro. Meu Deus, com tanto lugar pra passear no Rio! E no caso da moça, quando estivesse mais amolada, bastava tomar um bonde em direção à praia, descer no Mourisco, debruçar-se na amurada. Tinha o mar à sua disposição, a cinco minutos de casa. O mar, as viagens, as ilhas de coral, tudo grátis. Mas por preguiça pela curiosidade dos enterros, sei lá por quê, deu para andar em São João Batista, contemplando túmulo. Coitada!

No interior isso não é raro…
Mas a moça era de Botafogo.
Ela trabalhava?
Em casa. Não me interrompa. Você não vai me pedir certidão de idade da moça, nem sua descrição física. Para o caso que estou contando, isso não interessa. O certo é que de tarde costumava passear – ou melhor, “deslizar” pelas ruinhas brancas do cemitério, mergulhada em cisma… Olhava uma inscrição, ou não olhava, descobria uma figura de anjinho, uma coluna partida, uma águia, comparava as covas ricas às covas pobres, fazia cálculos de idade dos defuntos, considerava retratos em medalhões – sim, há de ser isso que ela fazia por lá, pois que mais poderia fazer? Talvez mesmo subisse ao morro, onde está a parte nova do cemitério, e as covas mais modestas. E deve ter sido lá que, uma tarde, ela apanhou a flor.
Que flor?
-Uma flor qualquer. Margarida, por exemplo. Ou cravo. Para mim foi margarida, mas é puro palpite, nunca apurei. Apanhou com esse gesto vago e maquinal que a gente tem diante de um pé de flor. Apanha, leva ao nariz – não tem cheiro, como inconscientemente já esperava –, depois amassa a flor, joga para um canto. Não se pensa mais nisso.


[...]








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