quarta-feira, 25 de setembro de 2013

3 poemas de PARANOIA de Roberto Piva




Roberto Piva


Paranoia


Visão 1961

as mentes ficaram sonhando penduradas nos esqueletos de fósforo
       invocando as coxas do primeiro amor brilhando como uma
       flor de saliva
 o frio dos lábios verdes deixou uma marca azul-clara debaixo do pálido
       maxilar ainda desesperadamente fechado sobre o seu mágico vazio
 marchas nômades através da vida noturna fazendo desaparecer o perfume
       das velas e dos violinos que brota dos túmulos sob as nuvens de
       chuva
fagulha de lua partida precipitava nos becos frenéticos onde
       cafetinas magras ajoelhadas no tapete tocando o trombone de vidro
       da Loucura repartiam lascas de hóstias invisíveis
 a náusea circulava nas galerias entre borboletas adiposas e
        lábios de menina febril colados na vitrina onde almas coloridas
        tinham 10% de desconto enquanto costureiros arrancavam os ovários
       dos manequins 

minhas alucinações pendiam fora da alma protegida por caixas de matéria
     plástica eriçando o pêlo através das ruas iluminadas e nos arrabaldes
     de lábios apodrecidos
na solidão de um comboio de maconha Mário de Andrade surge como um
     Lótus colando sua boca no meu ouvido fitando as estrelas e o céu
     que renascem nas caminhadas
noite profunda  de cinemas iluminados e lâmpada azul da alma desarticulando
     aos trambolhões pelas esquinas onde conheci os estranhos
     visionários da Beleza 

já é quinta-feira na avenida Rio Branco onde um enxame de Harpias
      vacilava com cabelos presos  nos luminosos e minha imaginação
      gritava no perpétuo impulso dos corpos encerrados pela
      Noite
 os banqueiros mandam aos comissários lindas caixas azuis de excrementos
      secos enquanto um milhão de anjos em cólera gritam nas assembleias
      de cinza OH cidade de lábios tristes e trêmulos onde encontrar
      asilo na tua face?
no espaço de uma Tarde os moluscos engoliram suas mãos
      em sua vida de Camomila nas vielas onde meninos dão o cu
      e jogam  malha e os papagaios  morrem de Tédio nas cozinhas
      engorduradas
E a Bolsa de Valores e os Fotógrafos pintaram seus lábios com urtigas
      sob o chapéu de prata do ditador Tacanho e o ferro e a borracha
      verteram monstros inconcebíveis
ao sudoeste do teu sonho uma dúzia de anjos de pijama urinam com
      transporte e em silêncio nos telefones nas portas  nos capachos
      das Catedrais sem Deus
 arte culinária ensinada nos apopléticos vagões da Seriedade por
       quinze mil perdidas almas sem rosto destrinçando barrigas
       adolescentes numa Apoteose de intestinos
porres acabando lentamente nas alamedas de mendigos perdidos esperando
       a sangria diurna de olhos findos e neblina enrolada na voz
       exaurida na distância
cus de granito destruídos com estardalhaço nos subúrbios demoníacos pelo
      cometa sem fé meditando beatamente nos púlpitos  agonizantes
minhas tristezas quilometradas ir pela sensível persiana semi-aberta da
      Pureza Estagnada e gargarejo de amêndoas emocionante nas palavras
       cruzadas no olhar
as névoas enganadoras das maravilhas consumida ir sobre o arco-íris
      de Orfeu amortalhado despejavam um milhão de crianças atrás das
      portas sofrendo
nos espelhos meninas desarticuladas pelos mitos recém-nascidos vagabundeavam
     acompanhadas pelas pombas a serem fuziladas pelo veneno
     da noite no coração seco do amor solar
meu pequeno Dostoiévski no último corrimão do ciclone de almofadas
     furadas derrama sua cabeça e sua barba como um enxoval noturno
     estende até O Mar
no exílio onde padeço angústia os muros invadem minha memória
     atirada no Abismo e meus olhos meus manuscritos meus amores
     pulam no Caos 


...


Visão de São Paulo à noite
Poema Antropófago sob Narcótico


Na esquina da rua São Luís uma procissão de mil pessoas
acende velas no meu crânio
há místicos falando bobagens ao coração das viúvas
e um silêncio de estrela partindo em vagão de luxo
fogo azul de gim e tapete colorindo a noite, amantes
chupando-se como raízes
Maldoror em taças de maré alta
na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida
a cidade com chaminés crescendo, anjos engraxates com sua gíria
feroz na plena alegria das praças, meninas esfarrapadas
definitivamente fantásticas
há uma floresta de cobras verdes nos olhos do meu amigo
a lua não se apóia em nada
eu não me apóio em nada
sou ponte de granito sobre rodas de garagens subalternas
teorias simples fervem minha mente enlouquecida
há bancos verdes aplicados no corpo das praças
há um sino que não toca
há anjos de Rilke dando o cu nos mictórios
reino-vertigem glorificado
espectros vibrando espasmos
beijos ecoando numa abóbada de reflexos
torneiras tossindo, locomotivas uivando, adolescentes roucos
enlouquecidos na primeira infância
os malandros jogam ioiô na porta do Abismo
eu vejo Brama sentado em flor de lótus
Cristo roubando a caixa dos milagres
Chet Baker ganindo na vitrola
eu sinto o choque de todos os fios saindo pelas portas
partidas do meu cérebro
eu vejo putos putas patacos torres chumbo chapas chopes
vitrinas homens mulheres pederastas e crianças cruzam-se e
abrem-se em mim como lua gás rua árvores lua medrosos repuxos
colisão na ponte cego dormindo na vitrina do horror
disparo-me como uma tômbola
a cabeça afundando-me na garganta
chove sobre mim a minha vida inteira, sufoco ardo flutuo-me
nas tripas, meu amor, eu carrego teu grito como um tesouro afundado
quisera derramar sobre ti todo meu epiciclo de centopéias libertas
ânsia fúria de janelas olhos bocas abertas, torvelins de vergonha,
correias de maconha em piqueniques flutuantes
vespas passeando em voltas das minhas ânsias
meninos abandonados nus nas esquinas
angélicos vagabundos gritando entre as lojas e os templos
entre a solidão e o sangue, entre as colisões, o parto
e o Estrondo





A PIEDADE


Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento
abatido na extrema paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da
luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria
aos sábados à noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam
cu-de-ferro e me fariam perguntas: por que navio
bóia? por que prego afunda?
eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as
estátuas de fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos
pederastas ou barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam
que tenho todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos
pavimentos
os adolescentes nas escolas bufam como cadelas
asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através
dos meus sonhos.



Roberto Piva


para ouvir



in: Paranoia / 1963


online em





Roberto Piva nasceu em São Paulo no dia 25 de setembro de 1937. [Faleceu em São Paulo em 3 de julho de 2010] Poeta ligado aos marginais dos anos 60, esteve na Antologia dos Novíssimos de Massao Ohno em 1961 e em 26 Poetas Hoje de Heloisa Buarque de Holanda. Foi professor na rede de ensino público, produtor de shows de rock e é um dos três únicos poetas brasileiros a ser citado no Dicionário Geral do Surrealismo publicado na França.


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