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ANÍBAL
M. MACHADO
O
HOMEM E SUA FACHADA
Toda
a vida venho reclamando a prorrogação do prazo para terminar
a
minha fachada. Não querem atender-me. Nem sei mais o que alegar.
Terminar
da noite para o dia, não posso. Mas também é aborrecido
ficar
sempre atrás de andaimes e caminhar para a morte antes de
concluir-se
a construção.
Ninguém
se espantará se eu confessar que talvez não termine nunca
a
minha fachada. Tenho adotado diferentes modelos. Mas logo me
aborreço
e passo para outro.
O
que me atrapalha bastante são as discussões a meu respeito.
Perde-se
muito tempo nisso. Às vezes quero intervir, mas não vale
a
pena, pois quando discutem minha fachada, já utilizo outra muito
diferente,
oposta mesmo às anteriores. Tudo resultado de eu não ter
ainda
fachada própria.
Afinal,
eu me pergunto: quando terminarei a minha? Ou melhor,
quando
cairá a que recomecei? Pois as minhas fachadas caem todas...
Talvez
porque costumo aproveitar em cada uma o material das outras;
talvez
porque não se possam manter no espaço em que as levanto.
Até
que tudo se resolva, vou tendo a fachada que me atribuem.
São
assim várias e numerosas as minhas fachadas.
Muitas
vezes se voltam contra mim, tapam-me, não me deixam
quase
respirar. Outras vezes – isso é frequente – se despregam
de
mim e vão erguer-se longe, enquanto eu fico atrás me rindo.
Aí
então, aproveito os momentos disponíveis para distrair-me.
Sinto-me
livre e cresço mais. E deixo os outros falarem mal
da
fachada anterior.
Tenho
uma fachada na universidades, outra nas rodas mundanas,
outra
no quarto de meu bem.
Trabalho
agora num tipo ideal de fachada. Permeável, sonora e
elástica.
Mutável, segundo o olhar de quem a contempla e a
luz
da paisagem para a qual se abre. Especialmente projetada
para
servir de aparência a algum edifício invisível. Insusceptível
de
ser reproduzida.
Mas
não me peçam que a termine tão cedo. O material é fluido.
Vou
trabalhando nela como posso, dia e noite. Com certa demora,
pois
há sempre pequenos incidentes. Por exemplo: meto um prego,
ele
perfura o Azul.
Tento
fixar um tijolo, ele cai no Vazio.
Mas
não desanimo. Minha paciência é grande. Vão ver depois
que
esplêndida fachada vai ser a minha.
In:
Cadernos de João / 1957
...
ANÍBAL
M. MACHADO
HOMEM
EM PREPARATIVOS
Ando
sempre em preparativos.
Acumulo
material, encomendo peças. Junto o necessário. Tomo
todas
as providências. E trato também da ornamentação.
Com
isso, vou-me distraindo. Troco coisas e ideias. Alguns me
ajudam,
servem-se também de mim. E todos assim nos distraímos
nesses
preparativos.
Mas
com que seriedade! Com que paixão!
Nos
momentos de intervalo, construímos cidades, casamos,
discutimos,
entramos na guerra.
Preparamo-nos
todos para qualquer coisa que ainda não aconteceu.
Há
dezenas de anos tem sido assim. Há milhares de anos...
adoro
os detalhes que aliviam o peso do conjunto. O que me atrapalha,
porém,
não é tanto o tempo perdido na escolha do material – isso
até
me preenche as horas – o que me atrapalha é a rapidez com
que
as coisas se deterioram.
Às
vezes recebo intimações para acabar depressa. Mas desconfio
e
faço cera. Acabar depressa, o quê?
Saio
então a ver se encontro qualquer coisa que seja bem difícil
de
achar – acontecimento ou mulher.
Meu
medo é a interrupção dessa busca por colapso de entusiasmo
ou
pela aparição fácil do objeto.
Procuro
sempre... Procuro sem remitência. Invento novas dificuldades.
Adoro
os obstáculos...
Vivo
assim amontoando, renovando, corrigindo, experimentando,
caindo
e me aprumando.
Assim
não chegará jamais o dia da minha inauguração. Pois o meu
pavor
é a viagem concluída, a coisa acabada...
o
meu pavor é a estátua de pedra, o feixe de ossos gelando
na
chuva ou debaixo da terra.
...
enquanto vocês aí fora continuam procurando, procurando...
Não.
Nunca serei inaugurado.
In:
Cadernos de João / 1957
Aníbal
M Machado
(1898-1964)
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