quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Recado ao senhor 903 - Rubem Braga








RUBEM BRAGA


Recado ao senhor 903


-Vizinho -

Quem fala aqui é o homem dos 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria ­visita pessoalmente - Devia ser meia noite - e sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou toda razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a lei e a polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno, e é impossível dormir no 903 quando há vozes, passos e música no 1003. Ou melhor, é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita: pois como não sei o seu nome, e o senhor não sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números, empilhados entre dezenas de outros.

Eu, 1003, me limito a leste pelo 1005, a oeste pelo 100], ao sul pelo Oceano Atlântico, ao norte pelo 1004, ao alto pelo 1013 e embaixo pelo 903 - que é o senhor, todos esses números são comportados e silenciosos, apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis: nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vir à minha casa (perdão, ao meu número) será convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois às 8: 15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 da outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda o outro número, mas o respeita ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas - e lhe prometo silêncio.

Mas que me seja permitido sonhar com outras vidas e outros mundos, em que um homem batesse à porta de outro e dissesse: “Vizinho, são três horas da manhã. e ouvi música em tua casa. Aqui estou’” E o outro respondesse “Entra vizinho, e come de meu pão e bebes de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela”.

E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.







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