segunda-feira, 16 de setembro de 2013

POEMA SUJO - Ferreira Gullar








FERREIRA GULLAR



Poema Sujo

[trechos]



Mas na cidade havia
muita luz,
        a vida
fazia rodar o século nas nuvens
               sobre nossa varanda
por cima de mim e das galinhas no quintal
               por cima
do depósito onde mofavam
paneiros de farinha
               atrás da quitanda,
                       e era pouco
viver, mesmo
no salão de bilhar, mesmo
no botequim do Castro, na pensão
da Maroca nas noites de sábado, era pouco
banhar-se e descer a pé
para a cidade de tarde
(sob o rumor das árvores)
                 ali
                 no norte do Brasil
                 vestido de brim.


         E por ser pouco
         era muito,
         que pouco muito era o verde
fogo da grama, o musgo do muro, o galo
que vai morrer,
a louça na cristaleira,
o doce na compoteira, a falta
de afeto, a busca
do amor nas coisas.


                 Não nas pessoas:
nas coisas, na muda carne
das coisas, na cona da flor, no oculto
falar das águas sozinhas:
                         que a vida
passava por sobre nós,
                         de avião.


Não tem a mesma velocidade o domingo
         que a sexta-feira com seu azáfama de compras
         fazendo aumentar o tráfego e o consumo
         de caldo de cana gelado,
                                    nem tem
         a mesma velocidade
         a açucena e a maré
com seu exército de borbulhas e ardentes caravelas
         a penetrar soturnamente o rio
         noutra lentidão que a do crepúsculo
         que, no alto,
         com sua grande engrenagem escangalhada
moía a luz.
                  Outra velocidade
tem Bizuza sentada no chão do quarto
         a dobrar os lençóis lavados e passados
         a ferro, arrumando-os na gaveta da cômoda, como
                se a vida fosse eterna.
                        E era
         naquele seu universo de almoços e temperos
         de folhas de louro e de pimenta-do-reino
         mastruz para tosse braba,
                           universo
         de panelas e canseiras entre as paredes da cozinha
         dentro de um surrado vestido de chita,
                                    enfim,
         onde batia o seu pequenino coração.
                    E se não era
         eterna a vida, dentro e fora do armário,
         o certo é que
         tendo cada coisa uma velocidade
                   (a do melado
                    escura, clara
                    a da água
                    a derramar-se)
         cada coisa se afastava
         desigualmente
         de sua possível eternidade.
                  Ou
                  se se quer
                  desigualmente
         a tecia
         na sua própria carne escura ou clara
         num transcorrer mais profundo que o da semana.
                  Por isso não é certo dize
         que é no domingo que melhor se vê
                  a cidade
         - as fachadas de azulejo, a Rua do Sol vazia
         as janelas trançadas no silêncio -
                  quando ela
                  parada
                  parece flutuar.


E que melhor se vê uma cidade
        quando - como Alcântara
        todos os habitantes se foram
e nada resta deles (sequer
        um espelho de aparador num daqueles
aposentos sem teto) - se não
        entre as ruínas
        a persistente certeza de que
        naquele chão
        onde agora crescem carrapichos
        eles efetivamente dançaram
        (e quase se ouvem vozes
        e gargalhadas
                que se acendem e apagam nas dobras da brisa)
                                 Mas


        se é espantoso pensar
        como tanta coisa sumiu, tantos
guarda-roupas e camas e mucamas
        tantas e tantas saias, anáguas,
        sapatos dos mais variados modelos
        arrastados pelo ar junto com as nuvens,
                                 a isso
        responde a manhã
        que
        com suas muitas e azuis velocidades
        segue em frente
                            alegre e sem memória

        É impossível dizer
em quantas velocidades diferentes
        se move uma cidade
                           a cada instante
                           (sem falar nos mortos
                           que voam para trás)
                           ou mesmo uma casa
onde a velocidade da cozinha
não é igual à da sala (aparentemente imóvel
nos seus jarros e bibelôs de porcelana)
         nem à do quintal
         escancarado às ventanias da época


                   e que dizer das ruas
de tráfego intenso e da circulação do dinheiro
e das mercadorias
         desigual segundo o bairro e a classe, e da
         rotação do capital
         mais lenta nos legumes
         mais rápida no setor industrial, e
         da rotação do sono
         sob a pele,
         do sonho
         nos cabelos?


         e as tantas situações da água nas vasilhas
         (pronta a fugir)


                 a rotação
         da mão que busca entre os pentelhos
         o sonho molhado os muitos lábios
         do corpo
         que ao afago se abre em rosa, a mão
         que ali se detém a sujar-se
         de cheiros de mulher,
                  e a rotação
         dos cheiros outros
         que na quinta se fabricam
         junto com a resina das árvores e o canto
         dos passarinhos?
         Que dizer da circulação
         da luz solar
arrastando-se no pó debaixo do guarda-roupa
         entre sapatos?
                 e da circulação
         dos gatos pela casa
         dos pombos pela brisa?
         e cada um desses fatos numa velocidade própria
         sem falar na própria velocidade
         que em cada coisa há
                  como os muitos


         sistemas de açúcar e álcool numa pêra
                  girando
         todos em diferentes ritmos
                           (que quase


         se pode ouvir)
                  e compondo a velocidade geral
         que a pêra é


do mesmo modo que todas essas velocidades mencionadas
          compõem
(nosso rosto refletido na água do tanque)
          o dia
          que passa
          - ou passou -
          na cidade de São Luís.


          E do mesmo modo
que há muitas velocidades num
          só dia
e nesse mesmo dia muitos dias
          assim
não se pode também dizer que o dia
tem um único centro
                                   (feito um caroço
                                    ou um sol)
          porque na verdade um dia
tem inumeráveis centros
          como, por exemplo, o pote de água
          na sala de jantar
          ou na cozinha
          em tomo do qual
desordenadamente giram os membros da família.


          E se nesse caso
é a sede a força de gravitação
          outras funções metabólicas
          outros centros geram
          como a sentina
          a cama
          ou a mesa de jantar
(sob uma luz encardida numa
          porta-e-janela da Rua da Alegria
          na época da guerra)
sem falar nos centros cívicos, nos centros
          espíritas, no Centro Cultural
Gonçalves Dias ou nos mercados de peixe,
          colégios, igrejas e prostíbulos,
          outros tantos centros do sistema
          em que o dia se move
(sempre em velocidades diferentes)
          sem sair do lugar.


          Porque
                   quando todos esses sóis se apagam
                   resta a cidade vazia
(como Alcântara)
no mesmo lugar.


          Porque
          diferentemente do sistema solar
          a esses sistemas
          não os sustém o sol e sim
          os corpos
          que em tomo dele giram:
          não os sustém a mesa
          mas a fome
          não os sustém a cama
          e sim o sono
          não os sustém o banco
          e sim o trabalho não pago


          E essa é a razão por que
          quando as pessoas se vão
                     (como em Alcântara)

apagam-se os sóis (os
          potes, os fogões)
          que delas recebiam o calor


          essa é a razão
          por que em São Luís
donde as pessoas não se foram
          ainda neste momento a cidade se move
          em seus muitos sistemas
          e velocidades
          pois quando um pote se quebra
          outro pote se faz
          outra cama se faz
          outra jarra se faz
          outro homem
          se faz
para que não se extinga
          o fogo
          na cozinha da casa


O que eles falavam na cozinha
          ou no alpendre do sobrado
          (na Rua do Sol)
          saía pelas janelas


          se ouvia nos quartos de baixo
na casa vizinha, nos fundos da Movelaria
          (e vá alguém saber
          quanta coisa se fala numa cidade
          quantas vozes
          resvalam por esse intrincado labirinto
          de paredes e quartos e saguões,
          de banheiros, de pátios, de quintais
                           vozes


          entre muros e plantas,
                           risos,
          que duram um segundo e se apagam)


E são coisas vivas as palavras
          e vibram da alegria dó corpo que as gritou
          têm mesmo o seu perfume, o gosto
          da carne
          que nunca se entrega realmente
          nem na cama
                            senão a si mesma
                            à sua própria vertigem
                            ou assim
falando
ou rindo
                            no ambiente familiar
          enquanto como um rato
          tu podes ouvir e ver
          de teu buraco
          como essas vozes batem nas paredes do pátio vazio
          na armação de ferro onde seca uma parreira
          entre arames
          de tarde
                   numa pequena cidade latino-americana.


          E nelas há
          uma iluminação mortal

                   que é da boca
                   em qualquer tempo

           mas que ali
           na nossa casa
                    entre móveis baratos
                    e nenhuma dignidade especial
           minava a própria existência.


                         Ríamos, é certo,
            em torno da mesa de aniversário coberta de pastilhas
            de hortelã enroladas em papel de seda colorido,
            ríamos, sim,
            mas
            era como se nenhum afeto valesse
            como se não tivesse sentido rir
            numa cidade tão pequena.


                     O homem está na cidade
                     como uma coisa está em outra
                     e a cidade está no homem
                     que está em outra cidade


                     mas variados são os modos
                     como uma coisa
                     está em outra coisa:
                     o homem, por exemplo, não está na cidade
                     como uma árvore está
                     em qualquer outra
                     nem como uma árvore
                     está em qualquer uma de suas folhas
                     (mesmo rolando longe dela)
                     O homem não está na cidade
                     como uma árvore está num livro
                     quando um vento ali a folheia


            a cidade está no homem
            mas não da mesma maneira
            que um pássaro está numa árvore
            não da mesma maneira que um pássaro
            (a imagem dele)
            está/va na água
                     e nem da mesma maneira
            que o susto do pássaro
            está no pássaro que eu escrevo


            a cidade está no homem
            quase como a árvore voa
            no pássaro que a deixa


            cada coisa está em outra
            de sua própria maneira
            e de maneira distinta
            de como está em si mesma


            a cidade não está no homem
            do mesmo modo que em sua
            quitandas praças e ruas



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Um comentário:

  1. Maravilha! .... Não poderia ter escolhido melhor.. Leonardo! .... Vá na PAZ.. Ferreira Gullar! ... Por aqui.. Continuaremos a falar sua Poesia.. Enquanto nos for possível.... E depois de Nós... Virão outros... E Outros .. E outros.... Pois.. Poesia/Poeta não morrem.. Adejam eternamente pelos ares............ EVOÉ!

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