RONALD
DE CARVALHO
[RJ,
1893 – 1935]
Toda
a América
Entre
Buenos Aires e Mendonza
3
Onde
estão os teus poetas, América?
Onde
estão eles que não compreendem
os
teus meios-dias voluptuosos,
as
tuas redes pesadas de corpos eurítmicos,
que
se balançam nas sombras úmidas,
as
tuas casas de adobe que dormem
debaixo
dos cardos,
os
teus canaviais que estalam e se
derretem
em pingos de mel,
as
tuas solidões, por onde o índio passa,
coberto
de couro, entre rebanhos de cabras,
as
tuas matas que chiam, que trilham,
que
assobiam e fervem,
os
teus fios telegráficos que enervam a
atmosfera
de humores humanos,
os
martelos dos teus estaleiros,
os
silvos das tuas turbinas,
as
torres dos teus altos fornos,
o
fumo de toas as tuas chaminés,
e
os teus silêncios silvestres que absorvem
e
espaço e o tempo?
Onde
estão os teus poetas, América?
Onde
estão eles que não se debruçam
sobre
os trágicos suores das tuas sestas bárbaras?
No
teu sangue mestiço crepitam fogos de queimadas,
juízes,
tribunais, leis, bolsas, congressos,
escolas,
bibliotecas, tudo se estilhaça
em
clarões, de repente, nos teus pesadelos irremediáveis.
Ah!
Como sabes queimas todos esses
troncos
da floresta humana,
e
refazer, como a Natureza, a tua ordem pela destruição!
Onde
estão os teus poetas, América?
Onde
estão eles que não veem o alarido
construtor
dos teus portos,
onde
estão eles que não veem essas bocas
marítimas
que te alimentam de homens,
que
atulham de combustível as fornalhas
dos
teus caldeamentos,
onde
estão eles que não veem todas essas
proas
entusiasmadas,
e
esses guindastes e essas gruas que se cruzam,
e
essas bandeiras que trazem a maresia
dos
fiordes e dos golfos,
e
essas quilhas e esses cascos veteranos
que
romperam ciclones e pampeiros,
e
esses mastros que se desarticulam,
e
essas cabeças nórdicas e mediterrâneas,
que
os teus mormaços vão fundir em bronze,
e
esses olhos boreais encharcados de luz
e
de verdura,
e
esses cabelos muitos finos que procriarão
cabelos
muito crespos,
e
todos esses pés que fecundarão os teus
desertos!
Teus
poetas não são dessa raça de servos
que
dançam no compasso de gregos e latinos,
teus
poetas devem ter as mãos sujas de
terra
, de seiva e limo,
as
mãos da criação!
E
inocência para adivinhar os teus prodígios,
e
agilidade para correr por todo o teu
corpo
de ferro, de carvão, de cobre, de
ouro,
de trigais, milharais e cafezais!
Teu
poeta será ágil e inocente, América!
A
alegria será a sua sabedoria,
a
liberdade será a sua sabedoria,
e
sua poesia será o vagido da tua própria
substância,
América, da tua própria
substância
lírica e numerosa.
Do
teu tumulto ele arrancará uma energia submissa,
e
no seu molde múltiplo todas as formas caberão,
e
tudo será poesia na força de sua inocência.
América,
teus poetas não são dessa raça
de
servos que dançam no compasso de
gregos
e latinos!
[...]
in:
Toda a América [1926]
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