terça-feira, 13 de agosto de 2013

MACÁRIO - de Álvares de Azevedo





ÁLVARES DE AZEVEDO


MACÁRIO


Episódio I

Numa estalagem da estrada


Macário (falando para fora): Olá, mulher da venda! Ponham-me na sala uma garrafa de vinho, façam-me a cama e mandem-me ceia: palavra de honra que estou com fome! Deem alguma ponta de charuto ao burro que está suado como um frade bêbado! Sobretudo não esqueçam o vinho!
Uma voz: Há aguardente unicamente, mas boa.
Macário: Aguardente! Pensas que sou algum jornaleiro?... Andar seis léguas e sentir-se com a goela seca. Ó mulher maldita! Aposto que também não tens água?
A mulher: E pura, senhor! Corre ali embaixo uma fonte que é limpa como o vidro e fria como uma noite de geada. (Sai).
Macário: Eis ai o resultado das viagens. Um burro frouxo. uma garrafa vazia. (Tira uma garrafa do bolso.) Conhaque! És um belo companheiro de viagem. És silencioso como um vigário em caminho, mas no silêncio que inspiras, como nas noites de luar, ergue-se às vezes um canto misterioso que enleva! Conhaque! Não te ama quem não te entende! não te amam essas bocas feminis acostumadas ao mel enjoado da vida, que não anseiam prazeres desconhecidos, sensações mais fortes! E eis-te aí vazia, minha garrafa! vazia como mulher bela que morreu! Hei de fazer-te uma nênia.
E não ter nem um gole de vinho! Quando não há o amor, há o vinho; quando não há o vinho, há o fumo; e quando não há amor, nem vinho, nem fumo, há o spleen. O spleen encarnado na sua forma mais lúgubre naquela velha taverneira repassada de aguardente que tresanda!
(Entra a mulher com uma bandeja).
A mulher: Eis aqui a ceia.
Macário: Ceia! Que diabo de comida verde é essa? Será algum feixe de capim? Leva para o burro.
A Mulher: São couves...
Macário: Leva para o burro.
A Mulher: É fritado em toicinho...
Macário: Leva para o burro, com todos os diabos!
(Atira-lhe o prato na cabeça. A mulher sai. Macário come.)
Um desconhecido - (entrando) : Boa-noite, companheiro.
Macário (comendo): Boa-noite
O Desconhecido: Tendes um apetite!
Macário: Entendo-vos. Quereis comer? sentai-vos. Quereis conversar? esperai um pouco.
O Desconhecido: Esperarei. (Senta-se).
Macário (comendo): Parece-me que não é a primeira vez que vos encontro. Quando a noite caía, ao subir da garganta da serra
O Desconhecido: Um vulto com um ponche vermelho e preto roçou a bota por vossa perna. . .
Macário: Tal e qual por sinal que era fria como o focinho de um cão.
O Desconhecido: Era eu.
Macário: Há um lugar em que estende-se um vale cheio de grama. À direita corre uma torrente que corta a estrada pela frente. . Há uma ladeira mal calçada que se perde pelo mato...
O Desconhecido: Aí encontrei-vos outra vez... A propósito, não bebeis ?
Macário: Pois não sabeis? Essa maldita mulher só tem aguardente; e eu que sou capaz de amar a mulher do povo como a filha da aristocracia, não posso beber o vinho do sertanejo...
O Desconhecido (Tira uma garrafa do bolso e derrama vinho no copo de Macário): Ah!
Macário: Vinho! (Bebe). À fé que é vinho de Madeira! À vossa saúde, cavalheiro!
O Desconhecido: À vossa. ( Tocam os copos) .
Macário: Tendes as mãos tão frias!
O Desconhecido: É da chuva. (Sacode o ponche). Vede: estou molhado até os ossos!
Macário: Agora acabei: conversemos ..
O Desconhecido: Vistes-me duas vezes. Eu vos vi ainda outra vez. Era na serra, no alto da serra. A tarde caía, os vapores azulados do horizonte se escureciam. Um vento frio sacudia as folhas da montanha e vós contempláveis a tarde que caía. Além, nesse horizonte, o mar como uma linha azul orlada de escuma e de areia-e no vale, como bando de gaivotas brancas sentadas num paul, a cidade que algumas horas antes tínheis deixado. Daí vossos olhares se recolhiam aos arvoredos que vos rodeavam, ao precipício cheio das flores azuladas e vermelhas das trepadeiras, às torrentes que mugiam no fundo do abismo, e defronte víeis aquela cachoeira imensa que espedaça suas águas amareladas, numa chuva de escuma, nos rochedos negros do seu leito. E olháveis tudo isso com um ar perfeitamente romântico. Sois poeta?
Macário: Enganai-vos. Minha mula estava cansada. Sentei-me ali para descansá-la. Esperei que o fresco da neblina a reforçasse. Nesse tempo divertia-me em atirar pedras no despenhadeiro e contar os saltos que davam.
O Desconhecido: É um divertimento agradável.
Macário: Nem mais nem menos que cuspir num poço, matar moscas, ou olhar para a fumaça de um cachimbo A minha mala (Chega à janela). Ó mulher da casa! olá! o de casa!
Uma voz (de fora): Senhor!
Macário: Desate a mala de meu burro e traga-m'a aqui .
A voz: O burro?
Macário: A mala, burro!
A voz: A mala com o burro?
Macário: Amarra a mala nas tuas costas e amarra o burro na cerca.
A voz: O senhor é o moço que chegou primeiro?
Macário: Sim. Mas vai ver o burro.
A voz: Um moço que parece estudante?
Macário: Sim. Mas anda com a mala.
A voz: Mas como hei-de ir buscar a mala? Quer que vá a pé?
Macário: Esse diabo é doido! Vai a pé, ou monta numa vassoura como tua mãe!
A voz: Descanse, moço. O burro há-de aparecer. Quando madrugar iremos procurar.
Outra voz: Havia de ir pelo caminho do Nhô Quito. Eu conheço o burro…
Macário: E minha mala?
A voz: Não vê? Está chovendo a potes!...
Macário (fecha a janela): Malditos! (Atira com ama cadeira no chão).
O Desconhecido: Que tendes, companheiro?
Macário: Não vedes? O burro fugiu. . .
O Desconhecido: Não será quebrando cadeiras que o chamareis..
Macário: Porém a raiva...
O Desconhecido: Bebei mais um copo de Madeira. (Bebem). Levais de certo alguma preciosidade na mala? (Sorri-se).
Macário: Sim . . .
O Desconhecido: Dinheiro?
Macário: Não, mas...
O Desconhecido: A coleção completa de vossas cartas de namoro, algum poema em borrão, alguma carta de recomendação?
Macário: Nem isso, nem aquilo. . . Levo. ..
O Desconhecido: A mala não pareceu-me muito cheia. Senti alguma coisa sacolejar dentro. Alguma garrafa de vinho?
Macário: Não! não! mil vezes não! Não concebeis, uma perda imensa, irreparável... era o meu cachimbo ..
O Desconhecido: Fumais?
Macário: Perguntai de que serve o tinteiro sem tinta, a viola sem cordas, o: copo sem vinho, a noite sem mulher- não me pergunteis se fumo!
O Desconhecido ( Dá-lhe um cachimbo. ): Eis aí um cachimbo primoroso. É de pura escuma do mar. O tubo é de pau de cereja. O bocal é de âmbar.
Macário: Bofé! Uma Sultana o fumaria! E fumo?
O Desconhecido: É uma invenção nova. Dispensa-o. Acendei-o na vela. (Macário acende).
Macário: E vós?
O Desconhecido: Não vos importeis comigo. (Tira outro cachimbo e fuma)
Macário: Sois um perfeito companheiro de viagem. Vosso nome?
O Desconhecido: Perguntei-vos o vosso?
Macário: O caso é que é preciso que eu pergunte primeiro. Pois eu sou um estudante. Vadio ou estudioso, talentoso ou estúpido, pouco importa. Duas palavras só: amo o fumo e odeio o Direito Romano. Amo as mulheres e odeio o romantismo.
O Desconhecido: Tocai! Sois um digno rapaz. (Apertam a mão).
Macário: Gosto mais de uma garrafa de vinho que de um poema, mais de um beijo que do soneto mais harmonioso. Quanto ao canto dos passarinhas, ao luar sonolento, às noites límpidas, acho isso sumamente insípido. Os passarinhos sabem só uma cantiga. O luar é sempre o mesmo. Esse mundo é monótono a fazer morrer de sono.
O Desconhecido: E a poesia?
Macário: Enquanto era a moeda de oiro que corria só pela mão do rico, ia muito bem. Hoje trocou-se em moeda de cobre; não há mendigo, nem caixeiro de taverna que não tenha esse vintem azinhavrado. Entendeis-me?
O Desconhecido: Entendo. A poesia, de popular tornou-se vulgar e comum. Antigamente faziam-na para o povo; hoje o povo a faz para ninguém .
Macário ( bebe ): Eu vos dizia pois Onde tínhamos ficado?
O Desconhecido: Não sei. Parece-me que falávamos sobre o Papa.
Macário: Não sei: creio que o vosso vinho subiu-me à cabeça. Puah! vosso cachimbo tem sarro que tresanda!
O desconhecido; Sois triste, moço... Palavra que eu desejaria ver essa poesia vossa.
Macário: Por quê?
O Desconhecido: Porque havia ser alegre como Arlequim assistindo a seu enterro...
Macário: Poesias a quê?
O Desconhecido: À luz, ao céu, ao mar. ..
Macário: mar é uma coisa soberanamente insípida. . . O enjoo é tudo quanto há mais prosaico. Sou daqueles de quem fala o corsário de Byron "whose soul would sicken o'er the heaving wave".
O Desconhecido: E enjoais a bordo?
Macário: É a única semelhança que tenho com D. Juan.
O Desconhecido: Modéstia!
Macário: Pergunta à taverneira se apertei-lhe o cotovelo, pisquei-lhe o olho, ou pus-lhe a mão nas tetas
O Desconhecido: Um dragão!
Macário: Uma mulher! Todas elas são assim. As que não são assim por fora o são por dentro. Algumas em falta de cabelos na cabeça os têm no coração. As mulheres são como as espadas, às vezes a bainha é de oiro e de esmalte e a folha é ferrugenta.
O Desconhecido: Falas como um descrido, como um saciado! E contudo ainda tens os beiços de criança! Quantos seios de mulher beijaste além do seio de tua ama de leite? Quantos lábios além dos de tua irmã?
Macário: A vagabunda que dorme nas ruas, a mulher que se vende corpo e alma, porque sua alma é tão desbotada como seu corpo, te digam minhas noites. Talvez muita virgem tenha suspirado por mim! Talvez agora mesmo alguma donzela se ajoelhe na cama e reze por mim!
O Desconhecido: Na verdade és belo. Que idade tens?
Macário: Vinte anos. Mas meu peito tem batido nesses vinte anos tantas vezes como o de um outro homem em quarenta.
O Desconhecido: E amaste muito?
Macário: Sim e não. Sempre e nunca.
O Desconhecido: Fala claro.
Macário: Mais claro que o dia. Se chamas o amor a troca de duas temperaturas, o aperto de dois sexos, a convulsão de dois peitos que arquejam, o beijo de duas bocas que tremem, de duas vidas que se fundem tenho amado muito e sempre! Se chamas o amor o sentimento casto e poro que faz cismar o pensativo, que faz chorar o amante na relva onde passou a beleza, que adivinha o perfume dela na brisa, que pergunta às aves, à manhã, à noite, às harmonias da música, que melodia é mais doce que sua voz, e ao seu coração, que formosura há mais divina que a dela - eu nunca amei. Ainda não achei uma mulher assim. Entre um charuto e uma chávena de café lembro-me às vezes de alguma forma divina, morena, branca, loira, de cabelos castanhos ou negros. Tenho-as visto que fazem empalidecer-me meu peito parece sufocar meus lábios se gelam, minha mão se esfria..
Parece-me então que se aquela mulher que me faz estremecer assim soltasse sua roupa de veludo e me deixasse por os lábios sobre seu seio um momento, eu morreria num desmaio de prazer! Mas depois desta vem outra- mais outra-e o amor se desfaz numa saudade que se desfaz no esquecimento. Como eu te disse, nunca amei.
O Desconhecido: Ter vinte anos e nunca ter amado! E para quando esperas o amor?
Macário: Não sei. Talvez eu ame quando estiver impotente!
O Desconhecido: E o que exigirias para a mulher de teus amores?
Macário: Pouca coisa. Beleza, virgindade, inocência, amor
O desconhecido (irônico): Mais nada?
Macário: Notai que por beleza indico um corpo bem feito, arredondado, setinoso, uma pele macia e rosada, um cabelo de seda-froixa e uns pés mimosos
O Desconhecido: Quanto à virgindade?
Macário: Eu a quereria virgem na alma como no corpo. Quereria que ela nunca tivesse sentido a menor emoção por ninguém. Nem por um primo, nem por um irmão Que Deus a tivesse criado adormecida na alma até ver-me como aquelas princesas encantadas dos contos-que uma fada adormecera por cem anos. Quereria que um anjo a cobrisse sempre com seu véu, e a banhasse todas as noites do seu óleo divino para guardá-la santa! Quereria que ela viesse criança transformar-se em mulher nos meus beijos.
O Desconhecido: Muito bem, mancebo! E esperas essa mulher?
Macário: Quem sabe!
O Desconhecido: E é no lodo da prostituição que hás-de encontrá-la?
Macário: Talvez! É no lodo do oceano que se encontram as pérolas
O Desconhecido: Em mau lugar procuras a virgindade! É mais fácil achar uma pérola na casa de um joalheiro que no meio das areias do fundo do mar.
Macário: Quem sabe!..
O Desconhecido: Duvidas pois?
Macário: Duvido sempre. Descreio às vezes. Parece-me que este mundo é um logro. O amor, a glória, a virgindade, tudo é uma ilusão.
O Desconhecido: Tens razão: a virgindade é uma ilusão! Qual é mais virgem, aquela que é deflorada dormindo, ou a freira que ardente de lágrimas e desejos se revolve no seu catre, rompendo com as mãos sua roupa de morte, lendo algum romance impuro?
Macário: Tens razão: a virgindade da alma pode existir numa prostituta, e não existir numa virgem de corpo.-Há flores sem perfume, e perfume sem flores. Mas eu não sou como os outros. Acho que uma taça vazia pouco vale, mas não beberia o melhor vinho numa xícara de barro.
O Desconhecido: E contudo bebes o amor nos lábios de argila da mulher corrupta!
Macário: O amor? Que te disse que era o amor? É uma fome impura que se sacia. O corpo faminto é como o conde Ugolino na sua torre morderia até num cadáver.
O Desconhecido: Tua comparação é exata. A meretriz é um cadáver.
Macário: Vale-nos ao menos que sobre seu peito não se morre de frio!
O Desconhecido: Admira-me uma coisa. Tens vinte anos: deverias ser puro como um anjo e és devasso como um cônego!
Macário: Não é que eu não voltasse meus sonhos para o céu. A cisterna também abre seus lábios para Deus, e pede-lhe uma água pura e o mais das vezes só tem lodo. Palavra de honra que às vezes quero fazer-me frade.
O Desconhecido: Frade! Para quê?
Macário: É uma loucura. Enche esse copo. (Bebe) Pela Virgem Maria! Tenho sono. Vou dormir.
O Desconhecido: E eu também Boa-noite.
Macário: Ainda uma vez, antes de dormir, o teu nome?
O Desconhecido: Insistes nisso?
Macário: De todo o meu coração. Sou filho de mulher.
O Desconhecido: Aperta minha mão. Quero ver se tremes nesse aperto ouvindo meu nome.
Macário: Juro-te que não, ainda que fosses
O Desconhecido: Aperta minha mão. Até sempre: na vida e na morte!
Macário: Até sempre, na vida e na morte!
O Desconhecido: E o teu nome?
Macário: Macário. Se não fosse enjeitado, dir-te-ia o nome de meu pai e o de minha mãe. Era de certo alguma libertina. Meu pai, pelo que penso, era padre ou fidalgo.
O Desconhecido: Eu sou o diabo. Boa-noite, Macário.
Macário: Boa-noite, Satan. (Deita-se. O desconhecido sai). O diabo! uma boa fortuna! Há dez anos que eu ando para encontrar esse patife! Desta vez agarrei-o pela cauda! A maior desgraça deste mundo é ser Fausto sem Mefistófeles Olá, Satan!


[...]



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sobre autor e obra



referências intertextuais

Lord Byron


O Fausto de Goethe




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