ÁLVARES
DE AZEVEDO
MACÁRIO
Episódio
I
Numa
estalagem da estrada
Macário
(falando para fora): Olá, mulher da venda! Ponham-me na sala uma
garrafa de vinho, façam-me a cama e mandem-me ceia: palavra de honra
que estou com fome! Deem alguma ponta de charuto ao burro que está
suado como um frade bêbado! Sobretudo não esqueçam o vinho!
Uma
voz: Há aguardente unicamente, mas boa.
Macário:
Aguardente! Pensas que sou algum jornaleiro?... Andar seis léguas e
sentir-se com a goela seca. Ó mulher maldita! Aposto que também não
tens água?
A
mulher: E pura, senhor! Corre ali embaixo uma fonte que é limpa
como o vidro e fria como uma noite de geada. (Sai).
Macário:
Eis ai o resultado das viagens. Um burro frouxo. uma garrafa vazia.
(Tira uma garrafa do bolso.) Conhaque! És um belo companheiro de
viagem. És silencioso como um vigário em caminho, mas no silêncio
que inspiras, como nas noites de luar, ergue-se às vezes um canto
misterioso que enleva! Conhaque! Não te ama quem não te entende!
não te amam essas bocas feminis acostumadas ao mel enjoado da vida,
que não anseiam prazeres desconhecidos, sensações mais fortes! E
eis-te aí vazia, minha garrafa! vazia como mulher bela que morreu!
Hei de fazer-te uma nênia.
E
não ter nem um gole de vinho! Quando não há o amor, há o vinho;
quando não há o vinho, há o fumo; e quando não há amor, nem
vinho, nem fumo, há o spleen. O spleen encarnado na sua forma mais
lúgubre naquela velha taverneira repassada de aguardente que
tresanda!
(Entra
a mulher com uma bandeja).
A
mulher: Eis aqui a ceia.
Macário:
Ceia! Que diabo de comida verde é essa? Será algum feixe de capim?
Leva para o burro.
A
Mulher: São couves...
Macário:
Leva para o burro.
A
Mulher: É fritado em toicinho...
Macário:
Leva para o burro, com todos os diabos!
(Atira-lhe
o prato na cabeça. A mulher sai. Macário come.)
Um
desconhecido - (entrando) : Boa-noite, companheiro.
Macário
(comendo): Boa-noite
O
Desconhecido: Tendes um apetite!
Macário:
Entendo-vos. Quereis comer? sentai-vos. Quereis conversar? esperai um
pouco.
O
Desconhecido: Esperarei. (Senta-se).
Macário
(comendo): Parece-me que não é a primeira vez que vos encontro.
Quando a noite caía, ao subir da garganta da serra
O
Desconhecido: Um vulto com um ponche vermelho e preto roçou a
bota por vossa perna. . .
Macário:
Tal e qual por sinal que era fria como o focinho de um cão.
O
Desconhecido: Era eu.
Macário:
Há um lugar em que estende-se um vale cheio de grama. À direita
corre uma torrente que corta a estrada pela frente. . Há uma ladeira
mal calçada que se perde pelo mato...
O
Desconhecido: Aí encontrei-vos outra vez... A propósito, não
bebeis ?
Macário:
Pois não sabeis? Essa maldita mulher só tem aguardente; e eu que
sou capaz de amar a mulher do povo como a filha da aristocracia, não
posso beber o vinho do sertanejo...
O
Desconhecido (Tira uma garrafa do bolso e derrama vinho no copo
de Macário): Ah!
Macário:
Vinho! (Bebe). À fé que é vinho de Madeira! À vossa saúde,
cavalheiro!
O
Desconhecido: À vossa. ( Tocam os copos) .
Macário:
Tendes as mãos tão frias!
O
Desconhecido: É da chuva. (Sacode o ponche). Vede: estou molhado
até os ossos!
Macário:
Agora acabei: conversemos ..
O
Desconhecido: Vistes-me duas vezes. Eu vos vi ainda outra vez.
Era na serra, no alto da serra. A tarde caía, os vapores azulados do
horizonte se escureciam. Um vento frio sacudia as folhas da montanha
e vós contempláveis a tarde que caía. Além, nesse horizonte, o
mar como uma linha azul orlada de escuma e de areia-e no vale, como
bando de gaivotas brancas sentadas num paul, a cidade que algumas
horas antes tínheis deixado. Daí vossos olhares se recolhiam aos
arvoredos que vos rodeavam, ao precipício cheio das flores azuladas
e vermelhas das trepadeiras, às torrentes que mugiam no fundo do
abismo, e defronte víeis aquela cachoeira imensa que espedaça suas
águas amareladas, numa chuva de escuma, nos rochedos negros do seu
leito. E olháveis tudo isso com um ar perfeitamente romântico. Sois
poeta?
Macário:
Enganai-vos. Minha mula estava cansada. Sentei-me ali para
descansá-la. Esperei que o fresco da neblina a reforçasse. Nesse
tempo divertia-me em atirar pedras no despenhadeiro e contar os
saltos que davam.
O
Desconhecido: É um divertimento agradável.
Macário:
Nem mais nem menos que cuspir num poço, matar moscas, ou olhar para
a fumaça de um cachimbo A minha mala (Chega à janela). Ó mulher da
casa! olá! o de casa!
Uma
voz (de fora): Senhor!
Macário:
Desate a mala de meu burro e traga-m'a aqui .
A
voz: O burro?
Macário:
A mala, burro!
A
voz: A mala com o burro?
Macário:
Amarra a mala nas tuas costas e amarra o burro na cerca.
A
voz: O senhor é o moço que chegou primeiro?
Macário:
Sim. Mas vai ver o burro.
A
voz: Um moço que parece estudante?
Macário:
Sim. Mas anda com a mala.
A
voz: Mas como hei-de ir buscar a mala? Quer que vá a pé?
Macário:
Esse diabo é doido! Vai a pé, ou monta numa vassoura como tua mãe!
A
voz: Descanse, moço. O burro há-de aparecer. Quando madrugar
iremos procurar.
Outra
voz: Havia de ir pelo caminho do Nhô Quito. Eu conheço o burro…
Macário:
E minha mala?
A
voz: Não vê? Está chovendo a potes!...
Macário
(fecha a janela): Malditos! (Atira com ama cadeira no chão).
O
Desconhecido: Que tendes, companheiro?
Macário:
Não vedes? O burro fugiu. . .
O
Desconhecido: Não será quebrando cadeiras que o chamareis..
Macário:
Porém a raiva...
O
Desconhecido: Bebei mais um copo de Madeira. (Bebem). Levais de
certo alguma preciosidade na mala? (Sorri-se).
Macário:
Sim . . .
O
Desconhecido: Dinheiro?
Macário:
Não, mas...
O
Desconhecido: A coleção completa de vossas cartas de namoro,
algum poema em borrão, alguma carta de recomendação?
Macário:
Nem isso, nem aquilo. . . Levo. ..
O
Desconhecido: A mala não pareceu-me muito cheia. Senti alguma
coisa sacolejar dentro. Alguma garrafa de vinho?
Macário:
Não! não! mil vezes não! Não concebeis, uma perda imensa,
irreparável... era o meu cachimbo ..
O
Desconhecido: Fumais?
Macário:
Perguntai de que serve o tinteiro sem tinta, a viola sem cordas, o:
copo sem vinho, a noite sem mulher- não me pergunteis se fumo!
O
Desconhecido ( Dá-lhe um cachimbo. ): Eis aí um cachimbo
primoroso. É de pura escuma do mar. O tubo é de pau de cereja. O
bocal é de âmbar.
Macário:
Bofé! Uma Sultana o fumaria! E fumo?
O
Desconhecido: É uma invenção nova. Dispensa-o. Acendei-o na
vela. (Macário acende).
Macário:
E vós?
O
Desconhecido: Não vos importeis comigo. (Tira outro cachimbo e
fuma)
Macário:
Sois um perfeito companheiro de viagem. Vosso nome?
O
Desconhecido: Perguntei-vos o vosso?
Macário:
O caso é que é preciso que eu pergunte primeiro. Pois eu sou um
estudante. Vadio ou estudioso, talentoso ou estúpido, pouco importa.
Duas palavras só: amo o fumo e odeio o Direito Romano. Amo as
mulheres e odeio o romantismo.
O
Desconhecido: Tocai! Sois um digno rapaz. (Apertam a mão).
Macário:
Gosto mais de uma garrafa de vinho que de um poema, mais de um beijo
que do soneto mais harmonioso. Quanto ao canto dos passarinhas, ao
luar sonolento, às noites límpidas, acho isso sumamente insípido.
Os passarinhos sabem só uma cantiga. O luar é sempre o mesmo. Esse
mundo é monótono a fazer morrer de sono.
O
Desconhecido: E a poesia?
Macário:
Enquanto era a moeda de oiro que corria só pela mão do rico, ia
muito bem. Hoje trocou-se em moeda de cobre; não há mendigo, nem
caixeiro de taverna que não tenha esse vintem azinhavrado.
Entendeis-me?
O
Desconhecido: Entendo. A poesia, de popular tornou-se vulgar e
comum. Antigamente faziam-na para o povo; hoje o povo a faz para
ninguém .
Macário
( bebe ): Eu vos dizia pois Onde tínhamos ficado?
O
Desconhecido: Não sei. Parece-me que falávamos sobre o Papa.
Macário:
Não sei: creio que o vosso vinho subiu-me à cabeça. Puah! vosso
cachimbo tem sarro que tresanda!
O
desconhecido; Sois triste, moço... Palavra que eu desejaria ver essa
poesia vossa.
Macário:
Por quê?
O
Desconhecido: Porque havia ser alegre como Arlequim assistindo a
seu enterro...
Macário:
Poesias a quê?
O
Desconhecido: À luz, ao céu, ao mar. ..
Macário:
mar é uma coisa soberanamente insípida. . . O enjoo é tudo quanto
há mais prosaico. Sou daqueles de quem fala o corsário de Byron
"whose soul would sicken o'er the heaving wave".
O
Desconhecido: E enjoais a bordo?
Macário:
É a única semelhança que tenho com D. Juan.
O
Desconhecido: Modéstia!
Macário:
Pergunta à taverneira se apertei-lhe o cotovelo, pisquei-lhe o olho,
ou pus-lhe a mão nas tetas
O
Desconhecido: Um dragão!
Macário:
Uma mulher! Todas elas são assim. As que não são assim por fora o
são por dentro. Algumas em falta de cabelos na cabeça os têm no
coração. As mulheres são como as espadas, às vezes a bainha é de
oiro e de esmalte e a folha é ferrugenta.
O
Desconhecido: Falas como um descrido, como um saciado! E contudo
ainda tens os beiços de criança! Quantos seios de mulher beijaste
além do seio de tua ama de leite? Quantos lábios além dos de tua
irmã?
Macário:
A vagabunda que dorme nas ruas, a mulher que se vende corpo e alma,
porque sua alma é tão desbotada como seu corpo, te digam minhas
noites. Talvez muita virgem tenha suspirado por mim! Talvez agora
mesmo alguma donzela se ajoelhe na cama e reze por mim!
O
Desconhecido: Na verdade és belo. Que idade tens?
Macário:
Vinte anos. Mas meu peito tem batido nesses vinte anos tantas vezes
como o de um outro homem em quarenta.
O
Desconhecido: E amaste muito?
Macário:
Sim e não. Sempre e nunca.
O
Desconhecido: Fala claro.
Macário:
Mais claro que o dia. Se chamas o amor a troca de duas temperaturas,
o aperto de dois sexos, a convulsão de dois peitos que arquejam, o
beijo de duas bocas que tremem, de duas vidas que se fundem tenho
amado muito e sempre! Se chamas o amor o sentimento casto e poro que
faz cismar o pensativo, que faz chorar o amante na relva onde passou
a beleza, que adivinha o perfume dela na brisa, que pergunta às
aves, à manhã, à noite, às harmonias da música, que melodia é
mais doce que sua voz, e ao seu coração, que formosura há mais
divina que a dela - eu nunca amei. Ainda não achei uma mulher assim.
Entre um charuto e uma chávena de café lembro-me às vezes de
alguma forma divina, morena, branca, loira, de cabelos castanhos ou
negros. Tenho-as visto que fazem empalidecer-me meu peito parece
sufocar meus lábios se gelam, minha mão se esfria..
Parece-me
então que se aquela mulher que me faz estremecer assim soltasse sua
roupa de veludo e me deixasse por os lábios sobre seu seio um
momento, eu morreria num desmaio de prazer! Mas depois desta vem
outra- mais outra-e o amor se desfaz numa saudade que se desfaz no
esquecimento. Como eu te disse, nunca amei.
O
Desconhecido: Ter vinte anos e nunca ter amado! E para quando
esperas o amor?
Macário:
Não sei. Talvez eu ame quando estiver impotente!
O
Desconhecido: E o que exigirias para a mulher de teus amores?
Macário:
Pouca coisa. Beleza, virgindade, inocência, amor
O
desconhecido (irônico): Mais nada?
Macário:
Notai que por beleza indico um corpo bem feito, arredondado,
setinoso, uma pele macia e rosada, um cabelo de seda-froixa e uns pés
mimosos
O
Desconhecido: Quanto à virgindade?
Macário:
Eu a quereria virgem na alma como no corpo. Quereria que ela nunca
tivesse sentido a menor emoção por ninguém. Nem por um primo, nem
por um irmão Que Deus a tivesse criado adormecida na alma até
ver-me como aquelas princesas encantadas dos contos-que uma fada
adormecera por cem anos. Quereria que um anjo a cobrisse sempre com
seu véu, e a banhasse todas as noites do seu óleo divino para
guardá-la santa! Quereria que ela viesse criança transformar-se em
mulher nos meus beijos.
O
Desconhecido: Muito bem, mancebo! E esperas essa mulher?
Macário:
Quem sabe!
O
Desconhecido: E é no lodo da prostituição que hás-de
encontrá-la?
Macário:
Talvez! É no lodo do oceano que se encontram as pérolas
O
Desconhecido: Em mau lugar procuras a virgindade! É mais fácil
achar uma pérola na casa de um joalheiro que no meio das areias do
fundo do mar.
Macário:
Quem sabe!..
O
Desconhecido: Duvidas pois?
Macário:
Duvido sempre. Descreio às vezes. Parece-me que este mundo é um
logro. O amor, a glória, a virgindade, tudo é uma ilusão.
O
Desconhecido: Tens razão: a virgindade é uma ilusão! Qual é
mais virgem, aquela que é deflorada dormindo, ou a freira que
ardente de lágrimas e desejos se revolve no seu catre, rompendo com
as mãos sua roupa de morte, lendo algum romance impuro?
Macário:
Tens razão: a virgindade da alma pode existir numa prostituta, e não
existir numa virgem de corpo.-Há flores sem perfume, e perfume sem
flores. Mas eu não sou como os outros. Acho que uma taça vazia
pouco vale, mas não beberia o melhor vinho numa xícara de barro.
O
Desconhecido: E contudo bebes o amor nos lábios de argila da
mulher corrupta!
Macário:
O amor? Que te disse que era o amor? É uma fome impura que se sacia.
O corpo faminto é como o conde Ugolino na sua torre morderia até
num cadáver.
O
Desconhecido: Tua comparação é exata. A meretriz é um
cadáver.
Macário:
Vale-nos ao menos que sobre seu peito não se morre de frio!
O
Desconhecido: Admira-me uma coisa. Tens vinte anos: deverias ser
puro como um anjo e és devasso como um cônego!
Macário:
Não é que eu não voltasse meus sonhos para o céu. A cisterna
também abre seus lábios para Deus, e pede-lhe uma água pura e o
mais das vezes só tem lodo. Palavra de honra que às vezes quero
fazer-me frade.
O
Desconhecido: Frade! Para quê?
Macário:
É uma loucura. Enche esse copo. (Bebe) Pela Virgem Maria! Tenho
sono. Vou dormir.
O
Desconhecido: E eu também Boa-noite.
Macário:
Ainda uma vez, antes de dormir, o teu nome?
O
Desconhecido: Insistes nisso?
Macário:
De todo o meu coração. Sou filho de mulher.
O
Desconhecido: Aperta minha mão. Quero ver se tremes nesse aperto
ouvindo meu nome.
Macário:
Juro-te que não, ainda que fosses
O
Desconhecido: Aperta minha mão. Até sempre: na vida e na morte!
Macário:
Até sempre, na vida e na morte!
O
Desconhecido: E o teu nome?
Macário:
Macário. Se não fosse enjeitado, dir-te-ia o nome de meu pai e o de
minha mãe. Era de certo alguma libertina. Meu pai, pelo que penso,
era padre ou fidalgo.
O
Desconhecido: Eu sou o diabo. Boa-noite, Macário.
Macário:
Boa-noite, Satan. (Deita-se. O desconhecido sai). O diabo! uma boa
fortuna! Há dez anos que eu ando para encontrar esse patife! Desta
vez agarrei-o pela cauda! A maior desgraça deste mundo é ser Fausto
sem Mefistófeles Olá, Satan!
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