RAUL
POMPEIA
O
ATENEU
Capítulo
1
"Vais
encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para
a luta." Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que
me despia, num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente
na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico, diferente do
que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos cuidados
maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer
mais sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento,
têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima
rigoroso. Lembramo-nos, entretanto, com saudade hipócrita, dos
felizes tempos; como se a mesma incerteza de hoje, sob outro aspecto,
não nos houvesse perseguido outrora e não viesse de longe a enfiada
das decepções que nos ultrajam.
Eufemismo,
os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que nos
alimentam, a saudade dos dias que correram como melhores. Bem
considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas. Feita a
compensação dos desejos que variam, das aspirações que se
transformam, alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma
base fantástica de esperanças, a atualidade é uma. Sob a coloração
cambiante das horas, um pouco de ouro mais pela manhã, um pouco mais
de púrpura ao crepúsculo — a paisagem é a mesma de cada lado
beirando a estrada da vida.
Eu
tinha onze anos.
Freqüentara
como externo, durante alguns meses, uma escola familiar do Caminho
Novo, onde algumas senhoras inglesas, sob a direção do pai,
distribuíam educação à infância como melhor lhes parecia.
Entrava às nove horas, timidamente, ignorando as lições com a
maior regularidade, e bocejava até às duas, torcendo-me de
insipidez sobre os carcomidos bancos que o colégio comprara, de
pinho e usados, lustrosos do contato da malandragem de não sei
quantas gerações de pequenos. Ao meio-dia, davam-nos pão com
manteiga. Esta recordação gulosa é o que mais pronunciadamente me
ficou dos meses de externato; com a lembrança de alguns companheiros
— um que gostava de fazer rir à aula, espécie interessante de
mono louro, arrepiado, vivendo a morder, nas costas da mão esquerda,
uma protuberância calosa que tinha; outro adamado, elegante, sempre
retirado, que vinha à escola de branco, engomadinho e radioso,
fechada a blusa em diagonal do ombro à cinta por botões de
madrepérola. Mais ainda: a primeira vez que ouvi certa injúria
crespa, um palavrão cercado de terror no estabelecimento, que os
partistas denunciavam às mestras por duas iniciais como em
monograma.
Lecionou-me
depois um professor em domicílio.
Apesar
deste ensaio da vida escolar a que me sujeitou a família, antes da
verdadeira provação, eu estava perfeitamente virgem para as
sensações novas da nova fase. O internato! Destacada do conchego
placentário da dieta caseira, vinha próximo o momento de se definir
a minha individualidade. Amarguei por antecipação o adeus às
primeiras alegrias; olhei triste os meus brinquedos, antigos já! os
meus queridos pelotões de chumbo! espécie de museu militar de todas
as fardas, de todas as bandeiras, escolhida amostra da força dos
estados, em proporções de microscópio, que eu fazia formar a
combate como uma ameaça tenebrosa ao equilíbrio do mundo; que eu
fazia guerrear em desordenado aperto, — massa tempestuosa das
antipatias geográficas, encontro definitivo e ebulição dos
seculares ódios de fronteira e de raça, que eu pacificava por fim,
com uma facilidade de Providência Divina, intervindo sabiamente,
resolvendo as pendências pela concórdia promíscua das caixas de
pau. Força era deixar à ferrugem do abandono o elegante vapor da
linha circular do lago, no jardim, onde talvez não mais tornasse a
perturbar com a palpitação das rodas a sonolência morosa dos
peixinhos rubros, dourados, argentados, pensativos à sombra dos
tinhorões, na transparência adamantina da água...
Mas
um movimento animou-me, primeiro estímulo sério da vaidade:
distanciava-me da comunhão da família, como um homem! ia por minha
conta empenhar a luta dos merecimentos; e a confiança nas próprias
forças sobrava. Quando me disseram que estava a escolha feita da
casa de educação que me devia receber, a notícia veio achar-me em
armas para a conquista audaciosa do desconhecido.
Um
dia, meu pai tomou-me pela mão, minha mãe beijou-me a testa,
molhando-me de lágrimas os cabelos e eu parti.
Duas
vezes fora visitar o Ateneu antes da minha instalação.
Ateneu
era o grande colégio da época. Afamado por um sistema de nutrido
reclame, mantido por um diretor que de tempos a tempos reformava o
estabelecimento, pintando-o jeitosamente de novidade, como os
negociantes que liquidam para recomeçar com artigos de última
remessa; o Ateneu desde muito tinha consolidado crédito na
preferência dos pais, sem levar em conta a simpatia da meninada, a
cercar de aclamações o bombo vistoso dos anúncios.
O
Dr. Aristarco Argolo de Ramos, da conhecida família do Visconde de
Ramos, do Norte, enchia o império com o seu renome de pedagogo. Eram
boletins de propaganda pelas províncias, conferências em diversos
pontos da cidade, a pedidos, à substância, atochando a imprensa dos
lugarejos, caixões, sobretudo, de livros elementares, fabricados às
pressas com o ofegante e esbaforido concurso de professores
prudentemente anônimos, caixões e mais caixões de volumes
cartonados em Leipzig, inundando as escolas públicas de toda a parte
com a sua invasão de capas azuis, róseas, amarelas, em que o nome
de Aristarco, inteiro e sonoro, oferecia-se ao pasmo venerador dos
esfaimados de alfabeto dos confins da pátria. Os lugares que os não
procuravam eram um belo dia surpreendidos pela enchente, gratuita,
espontânea, irresistível! E não havia senão aceitar a farinha
daquela marca para o pão do espírito. E engordavam as letras, à
força, daquele pão. Um benemérito. Não admira que em dias de
gala, íntima ou nacional, festas do colégio ou recepção da coroa,
o largo peito do grande educador desaparecesse sob constelações de
pedraria, opulentando a nobreza de todos os honoríficos berloques.
Nas
ocasiões de aparato é que se podia tomar o pulso ao homem. Não só
as condecorações gritavam-lhe do peito como uma couraça de grilos:
Ateneu! Ateneu! Aristarco, todo era um anúncio. Os gestos, calmos,
soberanos, eram de um rei — o autocrata excelso dos silabários; a
pausa hierática do andar deixava sentir o esforço, a cada passo,
que ele fazia para levar adiante, de empurrão, o progresso do ensino
publico; o olhar fulgurante, sob a crispação áspera dos
supercílios de monstro japonês, penetrando de luz as almas
circunstantes — era a educação da inteligência; o queixo,
severamente escanhoado, de orelha a orelha, lembrava a lisura das
consciências limpas — era a educação moral. A própria estatura,
na imobilidade do gesto, na mudez do vulto, a simples estatura dizia
dele: aqui está um grande homem... não veem os cavados de
Golias?!... Retorça-se sobre tudo isto um par de bigodes, volutas
maciças de fios alvos, torneadas a capricho, cobrindo os lábios
fecho de prata sobre o silêncio de ouro, que tão belamente impunha
como o retraimento fecundo do seu espírito, — teremos esboçado,
moralmente, materialmente, o perfil do ilustre diretor. Em suma, um
personagem que, ao primeiro exame, produzia-nos a impressão de um
enfermo, desta enfermidade atroz e estranha: a obsessão da própria
estátua. Como tardasse a estátua, Aristarco interinamente
satisfazia-se com a afluência dos estudantes ricos para o seu
instituto. De fato, os educandos do Ateneu significavam a fina flor
da mocidade brasileira.
A
irradiação da réclame alongava de tal modo os tentáculos através
do país, que não havia família, de dinheiro, enriquecida pela
setentrional borracha ou pela charqueada do sul, que não reputasse
um compromisso de honra com a posteridade doméstica mandar dentre
seus jovens, um, dois, três representantes abeberar-se à fonte
espiritual do Ateneu.
Fiados
nesta seleção apuradora, que é comum o erro sensato de julgar
melhores famílias as mais ricas, sucedia que muitas, indiferentes
mesmo e sorrindo do estardalhaço da fama, lá mandavam os filhos.
Assim entrei eu.
A
primeira vez que vi o estabelecimento, foi por uma festa de
encerramento de trabalhos.
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Raul
Pompeia [1863-1895]
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